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As revoluções políticas e as mídias sociais

Por Rafael Evangelista

Três entrevistas sobre as manifestações no norte da África e, mais recentemente, em Portugal. Que peso Twitter e Facebook têm nessas manifestações?

As entrevistas que vêm abaixo são parte do material bruto de uma reportagem a ser publicada na revista Ciência & Cultura. Estão aqui no melhor espírito do Jornalismo Livre (veja a idéia no texto que escrevi com Tiago Soares). Muito do bom material abaixo normalmente não seria publicado, por questões de espaço e foco da reportagem. A parte sobre o Brasil, por exemplo, foi totalmente limada da reportagem, isso porque surgiu a #geraçãoàrasca em Portugal (leia o manifesto aqui e reportagem aqui) e achei que seria uma oportunidade para incluí-la. E vocês verão que é bom material, possivelmente melhor do que a reportagem a que dará origem.

Sérgio Amadeu, sociólogo

Muito se falou sobre a influência de Facebook e Twitter na revolução egípcia. Qual sua avaliação sobre isso? Foram mesmo decisivos?

As redes de relacionamento online foram utilizadas indiscutivelmente para articular e repercutir os protestos, mas eles não foram as sementes da revolta. Estas origens estão no desgaste profundo do autoritarismo pró-americano no Egito representado pelo governo de Mubarak. Não foi o Facebook ou o Twitter que convenceu os egípcios que o governo Mubarak era ruim para o Egito. Todavia, as redes permitiram que a revolta ocorrida na Tunísia gerassem um rápido efeito no Egito. As redes garantiram a articulação dos primeiros protestos e foram importantes para sensibilizar a opinião pública mundial.

É importante ressaltar que a administração do Facebook foi acusada de colaborar com o sistema de inteligência dos Estados Unidos que atuou até o último momento para desarticular o movimento anti-Mubarak. O Twitter agiu de modo distinto. Quando a maioria dos provedores de acesso à Internet foram desconectados no Egito, o Twitter divulgou um número de telefone em que as pessoas poderiam gravar depoimentos que eram remetidos para a rede social e poderiam ser ouvidos pelos seguidores do @speak2tweet . Entretanto, os acontecimentos no Oriente Médio certamente levarão o sistema de defesa do governo norte-americano a criar procedimentos de rastreamento nas redes e exigirão a colaboração dos seus gestores. É preciso dizer que nenhuma rede social sediada nos Estados Unidos está livre das pressões e das regras impostas pelo governo norte-americano.

Pensando no contexto brasileiro, nos movimentos sociais e tecnológicos daqui. Você acha que algum movimento parecido seria possível? Fazendo um exercício, que peso a internet poderia ter se Diretas Já fosse hoje?

A resistência a lei do Senador Azeredo aqui no Brasil, lei conhecida como AI-5 Digital, foi feita fundamentalmente pela Internet. Obviamente a rede permite uma articulação rápida, de baixo custo e sem as dificuldades burocráticas das mobilizações partidárias ou sindicais. A campanha das Diretas Já, nos anos 1980, é um exemplo de articulação em rede sem a existência da Internet. Sem dúvida, a Internet colocaria novos atores e novas formas de protesto que ficariam fora do controle dos governadores e dos partidos.

Os movimentos sociais estão se digitalizando lentamente, mas a grande dificuldade para os sindicatos, partidos e movimentos tradicionais utilizarem plenamente a rede é sua cultura verticalizada e muitas vezes pouco transparente. Quando uma associação articula seus associados em redes online, ela também se abre mais para o debate e para as críticas de sua base. Em geral, os dirigentes mais antigos destes movimentos querem utilizar a Internet como dissiminador de suas propostas, mas a Internet é uma rede interativa, uma plataforma de conversações. Não é possível anular isto sem enfraquecer completamente o uso da rede.

Uma outra questão importante é que na Internet redes enfrentam redes. Um episódio que me chamou mais atenção do que a campanha eleitoral de 2010, em que os partidários de Serra se enfrentaram em batalhas digitais com os defensores da presidente Dilma, foi o embate em torno do ataque que as forças de segurança de Israel fizeram a "Frota da Liberdade". Um grupo de ativistas no início de 2010 partiram de Chipre com centenas de ativistas e com 10 mil toneladas de carga para Gaza que estava cercada pelo exército israelense. A frota de ajuda humanitária foi atacada no mar e imediatamente os apoiadores da frota subiram vídeos no Youtube condenando a agressão. Os sionistas reagiram com prontidão e subirão outros vídeos com imagens de soldados sendo agredidos ao se lançarem sobre o navio. Enfim, um verdadeiro embate de argumentos de uma rede em relação a outra se conformou na Internet e nas diversas redes sociais. Cada vez mais veremos redes de preferências se constituírem diante de outras.

Twitter e Facebook, ao mesmo tempo que favorecem a comunicação, permitem seu monitoramento e/ou o controle dos dados. Há alternativas?

Sem dúvida, toda rede social, pelas suas características permitem o monitoramento de pessoas, coletivos e mobilizações. Se as grandes corporações contratam empresas de rastreamento de sua marcas nas redes sociais e da blogosfera, imagine os serviços de segurança de Estados como a Inglaterra, França e Estados Unidos. Devido as características da Internet, uma rede cibernética, a comunicação mais distribuída é feita com base em um controle técnico preciso. Esta é a base sobre a qual se desenvolvem robôs, bots ou aranhas que vasculham todo o conteúdo da Internet. Uma das alternativas é utilizar a criptografia para se comunicar, mas não tem muito sentido usar mensagens cifradas em uma redes social. Contudo, acho que a hipertrofia é a melhor ação contra as tentativas de controle político e cultural. O uso das redes sociais deve ser ampliado com a consciência de que os vigilantes de plantão estão à espreita. Eles não têm a mesma capacidade de analisar e agir. Coletar informações é mais fácil.

Luiz Carlos Pinto, sociólogo

Muito se falou sobre a influência de Facebook e Twitter na revolução egípcia. Qual sua avaliação sobre isso? Foram mesmo decisivos?

Penso que nossa tradição tenderá a atribuir a essas duas redes sociais uma importância capital na queda de Mubarak, em sintonia com uma das perspectivas através das quais o ocidente interpreta a relação entre os homens e suas tecnologias. Nessa perspectiva, prometéica, as técnicas e as tecnologias são artífices de desenvolvimento, da iluminação, da liberdade, da autonomia. É essa linha que guia até esse momento a maioria das abordagens jornalísticas sobre o caso: a revolução no Egito foi apropriada pela ideia de que ela é a revolução das redes sociais, e não de seu povo! Essa perspectiva despolitiza o debate; põe em suspensão a historicidade da revolta popular no Egito; esconde os artífices que conquistaram sua legitimidade como tal na vivência cotidiana, ou seja, o povo; e minimiza um fato crucial no processo ainda em curso por lá: o Estado egípcio pode 'desligar' a internet no perímetro do país. Este último aspecto é um dos grande temas políticos do início desta década. Enquanto o ambiente de trocas globais da rede de computadores vem progressivamente sendo ameaçada por variadas tentativas de controle, centralização e privatização, celebra-se em última instância e contraditoriamente a 'conquista da liberdade graças à internet'.

Pensando no contexto brasileiro, nos movimentos sociais e tecnológicos daqui. Você acha que algum movimento parecido seria possível? Fazendo um exercício, que peso a internet poderia ter se Diretas Já fosse hoje?

É muito difícil afirmar ou negar que no Brasil, nos dias que correm, uma reação a um regime ditatorial ganharia ou não as ruas, ainda por cima fazendo uso intensivo de redes sociais, da internet, de gadgets ou o que for. Mas consolidamos, para o bem e para o mal, uma série de instâncias institucionais democráticas e expectativas em torno de seu funcionamento. De modo que não seria de estranhar que um levante popular no Brasil ocorresse, em reação a um regime opressor, fazendo uso de redes sociais e da internet de forma geral.

Por outro lado, é possível afirmar que a sociedade brasileira já vive uma condição de guerra civil - que varia em gradação de região e de cidade para cidade -, convivemos com um aparato policial urbano e rural excessivamente militarizado, preocupantemente despreparado; naturalizamos uma profunda desigualdade social; assim como não conseguimos superar estigmas que pautaram algumas das principais bandeiras da sociedade civil desde a década de 1970: o preconceito a minorias, étnicas, raciais, sexuais.

Onde estão as possíveis reações de base midiática e tecnológica a esse estado de opressão latente? Está latente, trabalhando de forma miúda, localizada e institucionalmente. O que emergirá desse processo? Só o tempo dirá.

É importante observar ainda que a internet no Brasil não somente é de má qualidade. É também frágil. O espectro de uma ameaça ditatorial política ou mesmo de ordem climática acentua essa fragilidade pois temos poucas fornecedoras de conexão - um legado do modelo da privatização do sistema Telebrás efetuado pelo governo FHC.

Miguel Caetano, comunicólogo português

Comparando os eventos na África e Oriente Médio, com relação ao uso da Internet para organizar as manifestações, você acha que há paralelos a serem feitos? Se sim, quais?

Eu acho que até certo ponto é possível sim inserir a manifestação de sábado em Portugal no contexto de todos os protestos desencadeados no Norte de África a partir do Facebook e das redes sociais.

Penso que existe muita coisa em comum para além da forma como esses eventos surgiram (ou, melhor dizendo, emergiram) a partir do Facebook. Nesse sentido, as coincidências são mais fortes no que toca à forma do que ao conteúdo.

Os eventos surgiram a partir de movimentos formados espontaneamente por pessoas que não eram propriamente personalidades públicas nas suas respectivas sociedades nem representavam oficialmente partidos, sindicatos, religiões ou outras instituições tradicionais. Isto em países com uma sociedade civil ainda muito incipiente, com níveis de participação política e cívica algo diminutos (Portugal inclusive, embora de uma forma não tão grave).

Por serem movimentos abertos, descentralizados e bottom-up, eles conseguiram superar todas as tentativas de apropriação da sua agenda por parte das instituições tradicionais. O mesmo se pode dizer das acusações de colagem política a determinados partidos e religiões lançadas pelos críticos. O grande risco seria que um desses grupos cooptasse totalmente algum dos movimentos, mas aí de abertos eles passaram a fechados. Essa abertura foi na verdade, quanto a mim, o segredo do seu sucesso pois se tivessem adoptado um vasto conjunto de reivindicações muito concretas o fracasso seria quase assegurado.

Uma coisa que eu, enquanto português, espero que aconteça também aqui é que estas manifestações não se limitem a um evento isolado e os organizadores do #geraçãoàrasca sigam o exemplo do que sucedeu na Tunísia e no Egipto no sentido de dar continuidade à pressão. E até agora penso que existem provas concretas disso uma vez que já estão a ser combinadas várias manifestações, a primeira das quais já para o aniversário da revolução de 25 de Abril de 1974.

De qualquer forma, eventos como estes não podem nem devem ser circunscritos ao Mediterrâneo. No Reino Unido os estudantes universitários também organizaram vários protestos contra o aumento das propinas no ensino superior. E a verdade é que os gregos foram os primeiros a estrear a moda logo em 2008, quando rebentou a crise financeira.

A equação parece simples: movimentos de pessoas comuns mais ou menos filiadas politicamente mas com poucos recursos financeiros que vêm no Facebook e no Twitter ferramentas bastante úteis e económicas para se organizarem e coordenarem entre si as suas reivindicações. Nada mais, nada menos ;) Mas só isto já é muito poderoso porque até aqui era muito difícil chegar a tanta gente em tanto lado num tão curto espaço de tempo. Seria praticamente impossível fazê-lo de outra forma, uma vez que a mídia apenas dá voz a quem tem dinheiro para tal ou a quem já conquistou relevância pública por intermédio de outras instituições tradicionais.

Agora, penso não existir aqui qualquer relação de dependência ou de subserviência mas sim uma relação simbiótica entre movimentos descentralizados e redes sociais. É um aproveitamento mútuo. Assim que uma das partes violar o contrato tácito estabelecido entre ambos, a relação rompe-se. Por exemplo, se o Facebook começasse a bloquear sistematicamente todas as convocatórias para eventos políticos, não tardaria que as pessoas iniciassem uma debandada massiva...

Agora quanto ao conteúdo, existem algumas diferenças significativas que resultam quer do perfil demográfico da sociedade em que cada movimento se insere, quer do grau de respeito pelas liberdades civis e políticas por parte do regime político vigente, já para não falar no leque de opções de fuga disponíveis em cada país ;)

Por exemplo, é notório que a sociedade portuguesa é muito mais envelhecida do que as sociedades do Norte de África pelo que isso compromete um pouco o grau de arrojo e audácia do movimento #geraçãoàrasca. Portanto, o confronto nunca podia ser tão directo. Até porque os níveis de corrupção no Norte de África são muito mais elevados do que o de Portugal. Por outro lado, por aqui já desde há muito tempo que ninguém vai preso ou é torturado por dizer mal do governo. Pode perder o emprego mas ninguém lhe toca fisicamente ;) E isso também atenua bastante a tensão.

Portanto, penso que existem sim várias semelhanças na forma mas não no conteúdo. Seja como for, quando falamos de ecologia da mídia eu continuo a dar razão ao mestre McLuhan no sentido de que "o meio (ainda) é a mensagem." E isso é o que explica o ritmo de difusão quase viral de protestos e revoltas surgidas a partir das redes sociais. E quando isso acontece até um país tão "pachorrento" como Portugal se deixa ir na onda ;) Quem passa a ter a vida bastante mais complicada são os políticos ;)

Sobre o autor

Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.


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