Liberdade? Que liberdade?
Por Rafael Evangelista
Data de Publicação: 07 de Março de 2007
Movimento software livre é um mosaico complexo de ideologias. Na boca de diferentes sujeitos, liberdade ganha diferentes sentidos. Garantir as quatro liberdades definidas pelo termo software livre é suficiente para a democratização do conhecimento?
É fato notório que o chamado "movimento software livre" - que responde
por esse nome no Brasil, mas que pode ser open source, FLOSS, FOSS e
outros no resto do mundo* - é uma bela salada ideológica. Advogando
pelas licenças livres e pela liberdade do software encontramos
anarquistas, capitalistas, comunistas, libertários de direita,
socialistas, alienados políticos, sindicalistas, políticos, estudantes,
micro-empresários, mega-corporações, artistas etc
O pior (ou melhor?) é que cada um desses defende a sua visão de
liberdade. O anarquista vê o software livre como a construção coletiva
que prova que a humanidade pode, sem se submeter a um poder coercitivo ,
trabalhar coletivamente; o libertário de extrema-direita acha que a
liberdade do software é mais um passo para a liberdade total dos
indivíduos e dos mercados; o estudante que não liga para política pensa
em arrumar emprego nesse novo nicho de mercado; o que liga quer mudar o
mundo começando pelo software; o micro-empresário quer é se ver livre de
pagar licenças exorbitantes; a mega-corporação quer usar os softwares de
qualidade que estão por aí, fazer suas aplicações web rodarem em seu
servidor e não ter que liberar nada para ninguém.
Pode ser que essa seja uma das razões para o crescimento do software
livre. Cada um o defendendo pelos seus motivos, o software livre cresce
a cada dia, entre empresários, governos, nas escolas, universidades, na
esquerda, na direita...
Contribui para isso o fato de a palavra liberdade ser elástica (não à
toa, é mote mesmo para governos autoritários). Ela permite múltiplas
interpretações, tantas que até os defensores do software proprietário
tem a cara-de-pau de usá-la; vivem falando em liberdade de escolha para
combaterem as leis que pretendem estabelecer o software livre como
padrão em escolas e na administração pública. Num malabarismo lógico,
querem que o elo mais fraco da cadeia, o aluno, seja "livre" para não
ter escolha, livre para, sozinho, tentar remar contra o sistema que
impõe seus padrões ao mercado.
Mas será que a liberdade do software, ao falar com pessoas com pessoas
tão diferentes, ao ter tantos sentidos, não acaba tendo sentido nenhum?
No fundo, essa é a mesma questão que se levanta quando alguém diz: mas
como pode o software livre ser visto por alguns como revolucionário e
anti-capitalista e, ao mesmo tempo, ser promovido por empresas como a
IBM e, mais recentemente, a Novell?
Em primeiro lugar é preciso retomar a velha distinção entre o movimento
software software livre e o código aberto. O termo open source (que em
português significa código aberto) representou um racha, uma ruptura, um
fork ideológico em um movimento que ainda engatinhava. De um lado
ficaram os chamados radicais, os mais idealistas, alguns antevendo no
software livre um caminho até para uma nova sociedade. De outro os
pragmáticos, aqueles que queriam se aproximar das empresas e fazer com
que softwares como o Linux se tornassem mais populares, mesmo que para
isso fosse preciso abandonar alguns princípios. A ruptura foi tão forte
que tentou-se mudar o nome, a história e as qualidades a serem
enfatizadas. Passaram a falar em código aberto (open source) em lugar de
software livre; subverteram a história, diminuindo ou relativizando a
contribuição de Richard Stallman; e passaram a enaltecer a qualidade
técnica do software ao invés das liberdades oferecidas pela licença.
De uma maneira bastente esperta, os pragmáticos do open source tornaram
muito clara sua mensagem. Saíram batendo na porta de seu público-alvo,
os empresários, enaltecendo as qualidades técnicas do software, que
seriam uma consequência natural do método de produção bazar, aquele em
que o código é submetido a um processo de desenvolvimento que é quase
uma seleção natural: testadas por muitos, as boas soluções sobrevivem e
as ruins perecem. Tinham um livro pseudo-antropológico em mãos, A
Catedral e o Bazar, de Eric Raymond; um herói limpinho, bem-comportado e
vindo de um país nórdico, Linus Torvalds; e um discurso bem azeitado
sobre como o futuro da indústria de Tecnologia da Informação estava em
vender serviços e não licenças. Se isso tudo é verdade ou não importa
pouco, o que interessa é que eles, os do código aberto, mesmo nem sempre
usando ternos e às vezes se comportando como nerds excêntricos, não
queriam mudar muito a ordem das coisas. Algo bem providencial. Para as
empresas, é claro, não se mexe em um mundo em que se está ganhando - ou
se mexe só um pouquinho, só para derrubar o gigante e dar chance aos
outros competidores.
O que o open source fez foi jogar para debaixo do tapete, às vezes até
tentando anular, o que o software livre tem de profundamente
transformador. Mais do que promotor de liberdades ele estabelece
condições de igualdade para a produção. O código deixa de ser patrimônio
exclusivo de alguns poucos e torna-se algo coletivo, a partir do qual
todos podem produzir. Assim, nenhuma empresa que comercialize ou preste
serviços em software livre tem grande vantagem sobre outra. O patrimônio
da empresa livre torna-se a capacidade intelectual de seus funcionários,
a organização de seu trabalho, o atendimento que oferece ao cliente. Não
é nenhum código sobre o qual mantenha controle exclusivo.
Isso não é pouco. É, de alguma forma, socializar os meios de produção,
velho sonho da esquerda. Nada impede que um conjunto qualquer de
indivíduos, que se organizam e aprendem (pois tem condições para isso,
já que o código está disponível), ofereça hoje um sistema operacional
completo, certamente melhor do que o sistema operacional mais vendido. A
diferença entre quem produz e quem consome software foi potencialmente
anulada. Nenhuma barreira legal impede que o indivíduo que consome
também produza. É como se houvesse terra distribuída para todos e cada
um, se assim quisesse, pudesse produzir seu alimento. Estão lá o solo e
as sementes, e há muitos manuais sobre como plantar.
Mas os defensores da liberdade... nem lá, nem cá, nem preto, nem branco,
muito pelo contrário: cinza. Um grande cinza. Sem assumir, talvez até
sem perceber o caráter transformador de suas propostas, os "radicais" do
software livre por enquanto continuam envergonhados. Usam como escudo a
palavra liberdade, aquela que vez ou outra sai da boca de George W.
Bush. Cada notícia divulgada sobre o governo da Venezuela usando
software livre é acompanhada de mensagens preocupadas da comunidade, com
medo de ser identificada com o homem que disse estar criando o
socialismo do século XXI. A própria Free Software Foundation diz que só
colabora com outros movimentos sociais para lutarem pelo software livre,
solidariedade zero a outras causas. Nem com o movimento contra a patente
sobre a vida, contra os transgênicos, que também luta contra um sistema
de propriedade intelectual opressivo, querem construir alianças. Nada
que ameace o grande cinza.
Mas será que são mesmo as tais quatro liberdades que garantem tudo? Será
que é isso que nos encanta? E se todo código for livre mas não for
distribuído? Ninguém obriga o Google a publicar o código livre que
utiliza em seus servidores, já que ele entrega aos clientes serviços web
e não software (quando entrega algum código usa licença proprietária). A
Apple usou um software livre para fazer o seu badalado sistema
operacional. Mas, já que esse código não era copyleft, não ofereceu
quase nada em troca, mantendo boa parte sua contribuição como segredo.
As liberdades são um fim em si mesmas ou são um meio para termos
igualdade de condições de produção?
Eu não defendo o software livre pelas quatro liberdades. As prezo muito
e não abro mão de nenhuma delas, mas para mim elas são úteis porque
levam à igualdade, que é a condição básica para que haja mais justiça
social.
E você, defende o software livre por quê?
*Não acho que o apego ao nome software livre tenha surgido à toa no
Brasil. Comecei a discutir essa questão em minha dissertação de
mestrado: Política e linguagem nos debates sobre o software livre
disponível para download. Mas
acho que ainda há muito o que se debater sobre isso.
Para saber mais sobre a diferença entre software livre e open source
veja: