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A virtualização do desktop e a googlezação da web

Por Rafael Evangelista

Data de Publicação: 26 de Setembro de 2006

O processo ainda não está concretizado, mas caminha a passos largos. É o sonho de muitas empresas (o maior exemplo é a Sun Microsystens) desde o boom da Internet. Mas somente agora parece adquirir condições técnicas, devido ao crescimento da banda larga, e econômicas, dado o modelo de négocio baseado em links patrocinados inventado pelo Google.

Até a Microsoft, tradicional vendedora de software, já começa a se insinuar na virtualização do desktop. Anunciou (veja matéria da Reuters) que pretende oferecer um processador de textos virtual, nos moldes do Writely que o Google já oferece. O produto da Microsoft deve ter anúncios na versão de uso gratuito, que podem ser retirados se o cliente quiser pagar.

Além do Writely, o Google já oferece uma planilha de cálculo, mais um dos inúmeros serviços prestados pela empresa: busca, blog, mapas, mensagens instantâneas, agenda, sistema de relacionamentos, email. Não é difícil que um usuário tenha toda a sua "vida na web" concentrada nos servidores de uma única companhia, capaz de interrelacionar buscas, mensagens trocadas, dados etc. Além dos óbvios problemas de violação de privacidade que isso pode representar, a integração dos serviços também implica na concentração de dados muito ricos sobre o usuário, formando um banco de dados de alto valor.

Embora o Google seja a empresa que mais tem feito avanços na prestação de serviços virtuais, uma pesquisa rápida no site Alexa, site que informa dados dos endereços mais vistados, mostra que os maiores da Internet são, respectivamente, Yahoo, MSN e Google. Os três oferecem, principalmente, buscas, serviços de listas de discussão e email gratuito.

A natureza do escorpião

Mas que consequências tem esse processo e, principalmente, o que isso representa para o movimento software livre? Em um primeiro momento, nada, talvez até represente algo positivo no sentido de diminuir a dependência das pessoas de softwares proprietários que precisam ser instalados em suas máquinas. O Google mesmo goza de muita simpatia da comunidade, graças a um eficiente trabalho de marketing, por usar (e propagandear que usa) software livre em seus servidores e por incentivar a produção de códigos livres em projetos como o Summer of Code.

Porém, se pensarmos a longo prazo, o fato de termos menos softwares em nossas máquinas e mais software (e dados, e arquivos) nos servidores dessas grandes empresas é algo perigoso.

Primeiro porque a mais "bem vista" dessas empresas, por exemplo, embora afirme usar software livre nem sempre torna livre as soluções que cria. Essas soluções, ou funcionam apenas remotamente - e não faz muito sentido entregar o código para os usuários, embora ler os fontes do buscador Google seja algo muito relevante não só em termo de conhecimento mas também no quesito auditabilidade -, ou são licenciadas como software proprietário, como o Google Earth que, além disso, demorou bastante a chegar em versão para sistemas livres.

Em segundo lugar porque nenhuma concentração é boa. Embora esses três gigantes constantemente briguem entre si, são corporações que podem facilmente chegar a acordos de convivência (tácitos ou explícitos) e que compartilham de uma mesma natureza. O principal objetivo delas é satisfazer seus acionistas, ávidos por lucros (quem não viu com certeza deve correr atrás do filme A Corporação) e para isso não primam por adotar ações éticas, a não ser que elas estejam inscritas em planos de marketing.

Empresas vivem de comercializar coisas que os compradores não têm. Nesse sentido, quanto menos pessoas possuírem aquilo que elas vendem maior será o preço que elas devem conseguir no mercado para seus produtos. Assim, o objetivo delas não é distribuir conhecimento (código é conhecimento) nem tornar esse conhecimento socialmente apropriável e compartilhado. Elas farão o que estiver ao alcance para tornar mais escasso o produto que vendem e tomarão as medidas possíveis para que poucos sejam capazes de prestar com a mesma eficiência que elas os serviços que comercializam. Não se trata de vilanizar as empresas, mas é preciso entender que elas são entes interessados, em última instância, em lucros.

Também por sua natureza, o software livre é algo anti-monopolista e não favorece concentração de riqueza e do conhecimento. Quando todos possuem o código, a concorrência é franca e aquele que presta serviços ou produz algo só consegue cobrar pelo trabalho que efetivamente realizou. E o preço nunca será algo abusivo.

A quem interessa virtualizar as funções de nossos computadores? Esse processo pode significar menos controle de nossas atividades e menor possibilidade de exercer nossas queridas liberdades para alterar, estudar e compartilhar. Quanto menos código em nossas mãos, pior para nós.

Sobre o autor

Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.


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