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Os donos do saber

Colaboração: Rafael Evangelista

Data de Publicação: 21 de Novembro de 2004

Como as grandes corporações capitalistas desenvolvem, sem alarde, tecnologias que poderão obrigar as sociedades a lhes pagar royalties pelo acesso à vida e à cultura

Em meados do século XIX, Karl Marx descreveu, no capítulo 25 do livro primeiro de "O Capital" o que chamou de acumulação primitiva. Ela seria como o pecado original do capitalismo, o início do processo que culminou na distinção entre os que detêm e os que não detêm os meios de produção. Teria acontecido entre os séculos XIV e XVI e resultado na extinção da figura do servo feudal e na criação do homem livre -- aquele que não dispõe de outra alternativa para sua sobrevivência senão vender a sua força de trabalho.

Mais de 500 anos após o início do processo de acumulação primitiva -- e pouco mais de um século depois de Marx tê-lo descrito -- alguns movimentos sociais, liderados pela ONG canadense ETC Group (Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologias e Concentração), sustentam que estaria ocorrendo um processo análogo. Segundo eles, as grandes corporações estariam promovendo, com o uso da tecnologia, novos "cercamentos" (enclosures, em inglês). Da mesma forma como as terras comunais foram sendo "cercadas" e tomadas, por aqueles que se tornaram os donos dos meios de produção, as empresas estariam fazendo uso da tecnologia para adquirir privilégios e criar novos monopólios.

A idéia foi apresentada no em uma sessão do Fórum Social Europeu no início de outubro. Em uma atividade intitulada "Resistindo aos monopólios corporativos e aos novos cercamentos", o ETC Group reuniu representantes de organizações como a Associação Britânica pelo Software Livre, o Greenpeace e o Corporate Watch. Na sessão, foram debatidas a questão das patentes sobre software e sobre a vida; o futuro, aplicações e a fusão entre nanotecnologia e biotecnologia; e as características da nova geração de plantas transgênicas, entre outros.

Um dos efeitos da acumulação primitiva foi o surgimento da figura do grande proprietário capitalista, o dono dos meios de produção e da terra. O capital acumulado por ele tranformou-se, em seguida, em investimentos que levaram à industrialização e à emergência do proletário. Hoje, esse papel seria desempenhado pelas empresas. Controlando o desenvolvimento tecnológico, elas criariam mecanismos que, combinados com as leis de propriedade intelectual, reforçam antigos monopólios e geram outros, agora sobre as formas de vida. Algumas novas tecnologias serviram para controlar a germinação de plantas, o posicionamento geográfico de animais ou mesmo para o gerenciamento de obras que circulam pela internet. Assim como a acumulação primitiva usou da usurpação da terra dos camponeses, hoje o controle sobre as formas de vida estaria a caminho de se tornar um privilégio de certas empresas.

Não cresça, não se reproduza

As siglas V-GURTs e T-GURTs designam dois "novos cercamentos" sobre as formas de vida. V-GURT significa algo como Tecnologia para a Restrição de Uso da Variedade Genética. A sua maior expressão é a tecnologia Terminator, aquela em que a variedade transgênica da planta é estéril. Logo após a concessão de patente por essa tecnologia, em 1998, houve intensa repercussão internacional. Agricultores de diversos países protestaram, por temer que a prática de guardar as sementes de uma safra para outra se tornasse impossível. A Monsanto, que adquiriu a patente no ano seguinte, comprometeu-se a não usar a a tecnologia, a não ser para testes internos da companhia.

A tecnologia T-GURTs foi descrita como a segunda geração do controle sobre a vida. A sigla pode ser traduzida por Tecnologia para a Restrição do Uso de Traços Genéticos. Nesse caso, não é apenas a fertilidade da planta que é controlada mas também a expressão de certa característica do organismo. Uma plantação transgênica, por exemplo, só poderia ter sua resistência a certa praga ativada a pós a aplicação de um determinado composto químico, fornecido pela empresa detentora da tecnologia. Os agricultores que adquirirem as suas sementes no mercado ilegal não obterão vantagem alguma, pois não possuirão o composto químico capaz de "ligar" o gene de resistência.

Para as entidades presentes da sessão do Fórum Europeu, há um risco evidente nessa tecnologia. Como a semente que ela produz não é estéril, poderia haver a contaminação de plantações vizinhas. Nesse caso, uma plantação alvo de contaminação poderia não se desenvolver por completo, já que o agricultor não disporia dos insumos químicos que ativariam um gene de crescimento, por não ter adquirido as sementes do detentor da tecnologia.

Em novos contratos, "polícia genética"

A tecnologia para tornar o desenvolvimento normal de uma planta dependente da adição de um determinado insumo químico já existe. Sua patente é de propriedade da Syngenta, um dos gigantes da biotecnologia. As sementes estéreis têm um alto custo de produção, o que dificulta a sua entrada no mercado. Plantas que precisam ser "ligadas" para crescer ou para se tornarem férteis - patente estadunidense de número 6147282 - teriam um menor custo de produção.

O ETC Group acredita que o alto investimento das empresas no desenvolvimento dessas tecnologias se deve à dificuldade encontrada para a aplicação legal dos direitos de propriedade intelectual. "Terminator e outras tecnologias de controle da expressão de traços genéticos podem substituir ou se somar à propriedade intelectual como a opção para estabelecer a supremacia tecnológica no mercado de sementes", afirma o grupo no comunicado intitulado "Novos cercamentos: métodos alternativos para aumentar o monopólio das corporações e a bio-servidão no século XXI".

Contratos como os que são estabelecidos pelas empresas com os agricultores nos Estados Unidos são tidos, pelas entidades, como equivalentes jurídicos das GURTs. De acordo com esses contratos, os agricultores se comprometem a comprar novas sementes a cada safra, usar o pesticida fornecido por um único fornecedor e se submeter à inspeção periódica de agentes da empresa, além de manterem sigilo sobre pontos do contrato. O New York Times já classificou esses agentes de "polícia genética".

Não veja, não ouça

No mundo digital, as GURTs encontram seu parelelo no DRM (sigla em inglês para Gerenciamento Digital de Direitos). "Sabe que é curioso, estávamos pensando em passar a usar o termo DURTs (Tecnologias Digitais para a Restrição de Uso, em inglês) mesmo antes de conhecer o problema na área biotecnológica", afirmou o hackerbritânico MJ Ray, desenvolvedor de software livre presente na sessão promovida pelo ETC Group.

Ray acredita que o DRM é intrinsicamente incompatível, técnica e filosoficamente, com o software livre. A tecnologia de gerenciamento digital de direitos permite ao proprietário dos direitos autorais (as empresas) "autorizar" ou não a execução de um arquivo. Ao ouvir um arquivo em MP3, por exemplo, o computador do usuário entraria em contato, pela internet, com um banco de dados que confirmaria a posse legal daquele arquivo. "Isso pode trazer problemas ao software livre pois, pela sua arquitetura, ele é capaz de burlar facilmente esse tipo de restrição", disse Ray. Os EUA, baseando-se em uma lei chamada DMCA (Lei de direitos autorais do milênio digital, em inglês), já prenderam e multaram milhares de usuários por violarem ou construírem sistemas que burlam restrições de direitos autorais.

"Isso pode ser um problema para o software livre", afirma o advogado especializado em direitos autorais Marco Ciurcina. Mas para ele, o DRM afeta principalmente o chamado "uso justo", o direito que alguém que compra um CD, por exemplo, tem de fazer uma cópia para si. "O DRM é incompatível com a lógica de um direito flexível. O direito autoral não é absoluto, acima dele está o direito da comunidade de usufruir das obras - o que hoje é permitido pela regra do uso justo".

A preocupação dos ativistas refere-se também ao controle da produção intelectual na mão das grandes empresas. Quase a totalidade das obras artísticas coletivas (músicas, filmes) e grande parte das obras individuais (livros, fotos) não é controlada pelos autores e sim por gravadoras, estúdios, editora e outros. Em um episódio recente, nem mesmo o ministro da cultura do Brasil, o músico Gilberto Gil, conseguiu dar autorização legal para que três de suas músicas pudessem ser compartilhadas livremente na internet. Refazenda, Refavela e Realce são controladas pela gravadora Warner, que não autorizou a liberação. Gil compartilhou Oslodum, canção gravada de forma independente.

O sucesso do DRM pode significar o controle sobre um processo (o compatilhamento na rede) que tem democratizado o acesso à cultura e pressionado a indústria do entretenimento a alterar seu modelo de negócio, diminuindo as margens de lucro. Ao mesmo tempo, ao adquirir um controle monopolista sobre os produtos culturais e sobre a reprodução da vida, usando dos "novos cercamentos", a indústria pode, pelo diagnóstico do ETC Group, expandir seu campo de atuação e dar origem a novos monopólios: sobre a vida e sobre as idéias.

Para ler (em inglês):

Sobre o autor

Rafael Evangelista é cientista social e linguista. Sua dissertação de mestrado tem o título Política e linguagem nos debates sobre o software livre. É editor-chefe da revista ComCiência e faz parte de algumas iniciativas em defesa do software livre como Rede Livre, Hipatia e CoberturaWiki.


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