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Minicomputadores Brasileiros nos anos 1970...

Colaboração: Ivan da Costa Marques

Data de Publicação: 13 de Novembro de 2005

Minicomputadores brasileiros nos anos 1970: uma reserva de mercado democrática em meio ao autoritarismo Brazilian minicomputers in the 1970s: a democratic market reserve during the authoritarian dictatorship

MARQUES, I. C. da: Minicomputadores brasileiros nos anos 1970: uma reserva de mercado democrática em meio ao autoritarismo. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. 10(2): 657-81, maio-ago. 2003.

Um novo entendimento do sucesso e do fracasso da assim chamada política de reserva de mercado dos computadores é oferecido chamando atenção para as redes, as rupturas e as interferências sociotécnicas. São utilizados três modelos de liberdade para abordar os princípios de organização política na tradição liberal democrática. E três desenvolvimentos sociotécnicos dos anos 1970 e 1980 se destacam: o caráter especial da comunidade de profissionais brasileiros de informática nos anos 1970; a intervenção da polícia política da ditadura militar; e o aparecimento do microcomputador. A análise derivada da combinação destes elementos coloca em cena uma divisão do período em duas fases. A primeira apresenta uma afinidade, em geral não levada em conta, entre as práticas democráticas liberais e a possibilidade de implementação bem-sucedida de políticas industriais e tecnológicas buscando simultaneamente o desenvolvimento econômico e o das ciências e tecnologias locais no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: computadores, política industrial, democracia, autoritarismo, comunidade.

MARQUES, I. C. da: Brazilian mini-computers in the 1970s: a democratic market reserve during the authoritarian dictatorship. História, Ciências, Saúde Manguinhos, vol. 10(2): 657-81, May-Aug. 2003. This article offers readers a new understanding of success and failure of the so-called computer market reserve policy, calling their attention to nets, as well as social and technical interruptions and interference. Three models of freedom have been used in order to approach the principles of political organization within liberal and democratic tradition. Three social and technical developmental models stand out during the 1970s and 1980s: the specific characteristics of Brazilian professionals in computer science in the 1970s, the intervention of political police force during the dictatorship and microcomputers themselves. As the result of the combination of these elements, the present analysis has divided the period into two different phases. The first phase shows a strong relation not always taken into account between liberal democratic practice and the possibility of successful industrial and technological policies that simultaneously sought economic development and science and technology development in Brazil. KEYWORDS: computers, industrial policy, democracy, authoritarianism, community.

Ivan da Costa Marques Professor da Pós-Graduação em Informática da Universidade Federal do Rio de Janeiro Rua Marquês de Abrantes, 88/307 22230-061Rio de Janeiro RJ Brasil <imarques (a) ufrj br>

vol. 10(2):657-81, maio-ago. 2003 vol. 10(2):657-81, maio-ago. 2003

Introdução

As últimas décadas assistiram à desconstrução das grandes narrativas como alicerces para os ideais iluministas, ditos universais, da modernidade. São os efeitos provisionais dos embates sociotécnicos, isto é, embates indissociavelmente científicos/políticos/tecnológicos/ econômicos/sociais, que decidem a vida contemporânea, em meio aos escombros dos edifícios antes confiáveis e estáveis das ideologias modernas.

Não surpreende que, neste quadro de coerências desfeitas, a tradição democrática liberal, com a ampla flexibilidade interpretativa de suas doutrinas, tenha se instalado como ponto de passagem obrigatório na avaliação de qualquer proposta de ação pública. Entra em cena o Estado mínimo e vai para os bastidores a idéia de planejamento e de intervenção do Estado na forma de, por exemplo, políticas industriais e tecnológicas. Daí a importância dos estudos dos espaços das condições de possibilidade e dos limites de convivência das doutrinas liberais democráticas com a implementação de políticas públicas dirigidas para objetivos de longo prazo. Estes estudos podem contribuir para a construção de propostas de novas democracias.

É com este alento que revisito aqui a política de reserva de mercados de computadores no Brasil nas décadas de 1970 e 1980. A história que apresento difere das histórias anteriores, na medida em que encontra e delineia na reserva de mercado um espaço onde experimentos de doutrinas liberais-democráticas e de intervenções propositais no desenvolvimento científico-tecnológico não só coabitaram como também reforçaram-se mutuamente na construção de uma política industrial mais ou menos centralizada. Este espaço estreito de reforço mútuo entre ingredientes de democracia liberal e de planejamento mais ou menos centralizado, orquestrado por ações públicas instrumentais, aparece e desaparece com a entrada em cena dos seguintes elementos da reserva de mercado dos computadores no Brasil: o caráter especial da comunidade de profissionais brasileiros de informática na década 1970; a intervenção do Serviço Nacional de Informações (SNI a polícia política da ditadura) nesta comunidade em 1979; e o advento dos microcomputadores e sua disseminação no Brasil na década de 1980. A imbricação destes elementos heterogêneos problematiza os vínculos entre as reservas dos mercados de mini e microcomputadores, o autoritarismo do regime militar e os ideais do liberalismo democrático.

O ângulo de inclinação sociotécnica da abordagem que adoto enseja a demarcação de duas fases em que os vínculos entre democracia, computadores e autoritarismo no Brasil diferem radicalmente.[1] A passagem de uma fase à outra acontece na virada da década, 1979-80, pela conjunção dos efeitos do advento dos microcomputadores, acontecimento dito técnico, e da intervenção policial do SNI na política industrial para a fabricação de computadores no país, acontecimento dito social (ou político). Por um lado, a metamorfose do minicomputador, que circulava como um bem de capital, em microcomputador, que adquiriu características de um bem de consumo, não se confinou à esfera estritamente técnica da miniaturização eletrônica, mas fez-se acompanhar de uma reformulação social dos produtores e usuários. Assim o técnico transbordou no social. Por outro lado, a intervenção policial autoritária do SNI não se limitou à esfera estritamente social ou política, gerando também enrijecimento técnico da configuração industrial (máquinas, conhecimentos e práticas) do capital investido dos atores empresariais que naquele momento constituíram uma aliança, mesmo que tácita, com a intervenção autoritária. Assim o social transbordou no técnico. Na ótica sociotécnica, são mudanças nas justaposições de elementos híbridos elementos simultaneamente técnicos e políticos conformando uma rede sem costuras que mudam as condições de possibilidades dos desenvolvimentos, caracterizando as duas fases que vou apresentar. Chamo atenção de que, surpreendentemente, a primeira fase da reserva de mercado dos computadores mostra uma afinidade não explorada entre as formas democráticas e a possibilidade de sucesso de políticas industriais mais ou menos centralizadas para o desenvolvimento das ciências e das tecnologias (e das economias) no Brasil.

A reserva de mercado

A adoção, por mais de uma década, de uma reserva de mercado para a fabricação de computadores no Brasil encontra-se sedimentada no imaginário brasileiro como uma experiência fracassada. Treze anos após o seu abandono, em 1990, ainda hoje ouvem-se referências à reserva de mercado como a uma espécie de descaminho estúpido.[2] O acompanhamento mais detalhado dos acontecimentos, feito pelas muitas histórias da política de informática no Brasil, mostra no entanto que, poucos anos antes da sua condenação, a reserva de mercado aparecia como um expediente de sucesso digno e surpreendente. Nesses estudos, são ressaltadas realizações tecnológicas e econômicas da reserva de mercado: no começo da década de 1980, o Brasil foi um dos poucos países em que empresas sob controle local conseguiram suprir uma parte significativa do mercado interno de minicomputadores com marcas e tecnologias próprias. Equipes de engenheiros e técnicos brasileiros haviam absorvido a tecnologia de produtos originalmente licenciados e efetivamente conceberam e projetaram sistemas completos (hardware e software) de minicomputadores e diversos outros artefatos de computação, colocados no mercado por empresas brasileiras com sucesso econômico e técnico. A comparação entre as características técnicas dos sistemas de minicomputadores colocados no mercado pelas empresas brasileiras e as características dos sistemas então oferecidos no mercado internacional indica o quanto as equipes brasileiras se aproximaram daquelas existentes no mundo desenvolvido no início dos anos 1980.[3] A Tabela I é usualmente tomada como uma representação sumária dos resultados econômicos.

Em suma, as histórias e análises da reserva de mercado, que são muitas, feitas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros,[4] reconhecem aquela fase de sucesso. Mas todas deixam entrever a explicação do seu esgotamento e conseqüente abandono em 1990 como um resultado previsível da combinação da oferta ao mercado de produtos tecnicamente defasados a preços altos com a pressão norte-americana para que o Brasil abrisse o mercado dos computadores. Não pretendo diminuir a importância desta combinação, porém, em suas conclusões, esses estudos históricos e análises não chegam a abalar a certeza que muitos têm de que a reserva de mercado se resumiu a uma aliança insólita, formada, dizem, no ranço da ditadura militar, entre setores da esquerda, empresários astuciosos e a direita nacionalista. A reserva de mercado seria hoje, portanto, um desvio no sentido próprio do termo, na medida em que não poderia conduzir a ação pública ao ponto de passagem hoje obrigatório da reconciliação com a tradição democrática liberal.

Para promover a reconciliação dos mecanismos de reserva de mercado com a tradição democrática liberal, cabe, preliminarmente, focalizar as várias concepções de liberdade como um princípio de construção de ordem política que a tradição democrática liberal pode abrigar. É disto que me ocupo na próxima seção.

Três modelos de liberdade como um princípio de ordem política na tradição democrática liberal

Vou destacar esquematicamente três concepções ou modelos principais de liberdade como princípio de construção de ordem política, todos presentes na tradição democrática liberal. Para tanto lançarei mão do excelente estudo de Yaron Ezhavi (1990).

  1. A primeira concepção -- o equilíbrio involuntário em que Adam Smith ([1776] 1937, p. 423) fincou a raiz da ciência econômica sugere que a interação espontânea entre atores livres a serviço de seus próprios interesses pode gerar um sistema equilibrado de ações cujos resultados agregados são publicamente benéficos. Segundo esse modelo, geralmente o ator individual nem pretende promover nem sabe o quanto está promovendo o interesse público. Ao buscar seu próprio interesse ele freqüentemente promove o da sociedade mais eficazmente do que quando tem a intenção de promovêlo. Em formulação do século XX, Friedrich Hayek, autor de grande influência sobre correntes importantes dos economistas brasileiros, diz que a única alternativa à submissão às forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado é a submissão ao poder igualmente incontrolável e portanto arbitrário de outros homens.[5] Hayek aceita o conceito democrático-liberal de liberdade como um princípio de criatividade política, mas insiste que se trata de criatividade cega.

  2. A segunda concepção de liberdade que habita a tradição democrática liberal parte da hipótese de que a ação é simultaneamente voluntária e informada. A ordem pública é mantida por uma interação esclarecida, isto é, por indivíduos que formam consenso ou geram maiorias em processos de aprendizagem e persuasão racional. As restrições à liberdade são reconhecidas e auto-impostas pelas ações de indivíduos informados. Segundo essa concepção de ajustes reciprocamente informados, em lugar das leis do mercado, é o status normativo de padrões racionais de conduta que impede o comportamento arbitrário, o aspecto destrutivo da liberdade. Essa concepção transitou pelos séculos na tradição democrata liberal nos escritos de Condorcet, John Stuart Mill, John Dewey e Karl Popper.

  3. Ainda segundo Ezhavi (1990, p. 21), a terceira concepção, a da justificativa por indicadores, é uma variante centralizada da segunda, presente nos pensamentos de Thomas Hobbes, Alexander Hamilton, Jeremy Bentham e Charles Merrian, entre outros. A ordem é mantida por poucos atores esclarecidos, cujas ações não se tornam arbitrárias ou subjetivas por força de padrões de desempenho adequado, extrapolíticos, ou seja, técnicos, estabelecidos publicamente. Como têm de justificar suas ações perante cidadãos livres, os poucos atores no centro precisam recorrer a indicadores de confiança do público para mostrar que estão buscando o interesse público. A reconciliação dessas estruturas centralizadas de ações com valores políticos democráticos é uma estrutura descentralizada de cobrança de responsabilidade ou prestação de contas ao público.

    As três concepções, cada uma a seu modo, permitem enxergar as ações livres como relações estruturadas de causa e efeito e separar, de um lado, a liberdade como um princípio criativo do exercício de práticas democráticas liberais, e, de outro lado, a liberdade como uma fonte de ações arbitrárias. As três variantes permitem que as ações sejam externalizadas como padrões identificáveis ou iluminados contra um fundo indiferenciado ou escuro. O que muda de uma para outra é a perspectiva a partir da qual as ações formam um todo ou uma unidade mais ou menos coerente e estável, e as diferentes implicações políticas dessas diferentes perspectivas.

    Ezhavi (1990, pp. 25-6) esclarece a diferença entre as três variantes com uma ilustração hipotética, imaginando os atores como vaga-lumes que deixam suas ações marcadas com uma trajetória iluminada contra um fundo escuro. Na primeira variante, a do equilíbrio involuntário ou de mercado, que concebe a liberdade como ação voluntária de egoístas autônomos, os atores-vaga-lumes não vêem (ou ignoram) seus rastros de luz, mas, ao deixá-los, viabilizam uma visão do olho de Deus do padrão harmonioso da composição de todas as trajetórias sob a regência da mão invisível.

    Na segunda variante, que concebe a liberdade como uma interação esclarecida, os atores-vaga-lumes observam as trajetórias iluminadas uns dos outros e adaptam mutuamente seus movimentos para formar um padrão coletivo. A perspectiva aqui é a da visibilidade e da transparência recíproca, que tornam possível a coordenação e a coerência na ação coletiva. Enquanto no caso do equilíbrio involuntário a interação é cega e a luz, uma condição para o conhecimento de quem está fora, no caso de interação esclarecida a luz é um meio de ajuste e cooperação mútua. Em ambas as variantes o Estado liberal tem funções mínimas como guardião e facilitador de interações suaves e polidas.

    Na terceira variante da liberdade como princípio de construção política, a ordem é mantida pelas ações tomadas em nome do público por poucos funcionários escolhidos mediante uma justificativa por objetivos. Esta variante combina elementos de ambas as outras, equilíbrio espontâneo tipo mercado e coordenação descentralizada esclarecida. A reivindicação do governo de agir em nome do público se assenta na hipótese de que as preferências dos cidadãos são claras para o governo. O olho de Deus da primeira concepção é substituído aqui pelo olho do Estado, mas o potencial autoritário de tal condição é supostamente cerceado por igual clareza das ações do governo liberal-democrático perante os cidadãos como espectadores. O princípio de transparência recíproca entre cidadãos, principal característica da interação esclarecida, é transformado no terceiro modelo em transparência recíproca entre cidadãos e o governo. Na medida em que a prerrogativa de observar e testemunhar de todos os atores (cidadãos livres) exista e seja descentralizada, a imprescindibilidade da transparência das ações governamentais surge para limitar a centralização do poder (poder observado é poder decaído).

    Em cada uma das três variantes da ação pública liberal-democrática (equilíbrio involuntário, interação esclarecida e justificativa por objetivo), uma distribuição diferente da visibilidade ou propriedade de aparecer para o outro pressupõe uma distribuição particular do poder de controlar a ação. O que torna a variante centralizada ainda consistente com os valores democráticos liberais é que, ao contrário do centralismo autoritário-tecnocrático, seu instrumentalismo democrático implica um governo que permaneça visível e portanto exposto aos cidadãos como espectadores que podem questioná-lo em seus próprios termos.

    Utilizarei esse esquema de três concepções ideais para analisar o espaço de reconciliação da reserva de mercado com a tradição democrática liberal. A primeira concepção, tomada em sua idealidade, não é conciliável com uma política de reserva de mercado ou, mais precisamente, com uma ação pública instrumental do tipo que será caracterizado aqui como o daquela que resultou na reserva de mercado . Mas vou argumentar que as outras duas, ideal e praticamente, o são.

A construção de ação voluntária e informada

Negociação e convergência de visões e de interesses diversos

Na primeira metade da década de 1970, professores, alunos de pósgraduação e pesquisadores projetaram diversos produtos de informática nas universidades brasileiras: modems, terminais de vídeo, terminais inteligentes (precursores dos microcomputadores de hoje), processadores dedicados, compiladores, protocolos de comunicação. Nessa mesma época alguns birôs estatais de processamento de dados especialmente o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO) investiram em laboratórios de desenvolvimento de produtos. Da mesma forma, nos laboratórios de organizações militares especialmente o Instituto de Pesquisas da Marinha (IpqM) artefatos de informática recebiam atenção especial. Também em meados da década de 1970, a ditadura militar fez circular o conceito de democracia relativa com o intuito de tentar domesticar as formas democráticas em lugar de procurar simplesmente eliminá-las. A democracia relativa significava a ampliação dos espaços onde se podia falar, escrever e agir, em termos de pessoas e temas permitidos, sem contudo admitir todo e qualquer tema.

Foi no estreito e precário espaço da democracia relativa que indivíduos oriundos de três categorias distintas de profissionais de computação relacionaram-se e, voluntária e informadamente, negociaram suas atuações, formando pouco a pouco uma comunidade que se aglutinou por meio de seminários e congressos realizados periodicamente (SECOMUs e SECOPs)[6] e de uma imprensa especializada (o jornal quinzenal Datanews e a revista bimestral Dados e Idéias). Essas três categorias de profissionais de computação eram, grosso modo, os professores universitários, os oficiais militares engenheiros, e os administradores de empresas estatais. Durante os anos 1970, esses grupos díspares de profissionais, tendo pontos de partida diferentes mas interagindo em congressos e seminários e por intermédio de artigos na imprensa especializada, gradativamente passaram a ver que, pelo menos em parte, suas percepções e análises das questões tecnológicas coincidiam em muitos pontos. O levantamento da coleção da revista Dados e Idéias mostra que, de agosto de 1975 a maio de 1979, lá escreveram e participaram dos SECOMUs e SECOPs profissionais de informática das mais diversas opções políticas e vinculações institucionais, incluindo um grupo pouco numeroso de oficiais militares da ativa dentre um número bem maior de administradores, quase todos das empresas estatais de processamento de dados e das empresas estatais de comunicações, além da maioria composta por professores universitários. Esses profissionais escreveram artigos cobrindo uma gama ampla de aspectos e interesses: comparações com o que outros países vinham fazendo a respeito de política de informática; uso e produção dos computadores, desde a (falta de) mecânica fina no país até problemas éticos relativos ao projeto do número único para cada cidadão; tendências vigentes no desenvolvimento do software básico e de aplicativos etc. A revista apresenta também freqüentes entrevistas com funcionários públicos que ocupavam cargos cujo desempenho a comunidade relacionava direta ou indiretamente com a informática, abrangendo questões que variavam desde os controles de importação e exportação até os problemas de educação e de currículos dos cursos, fazendo da revista um ponto de encontro de observações do poder do governo.

Havia uma grande diversidade de interesses e abordagens, mas praticamente todas as intervenções, fossem elas nos congressos ou nos periódicos, compartilhavam a idéia de que dominar a tecnologia dos computadores era uma questão estratégica para um país como o Brasil. Os profissionais de informática estavam bem posicionados para criar e expandir seus vínculos com a oportunidade que a democracia relativa oferecia para que discutissem suas atuações profissionais em termos sociais e políticos mais abrangentes. Para aquelas três identidades de profissionais de informática professores universitários, administradores públicos, militares técnicos , soluções mais apropriadas e mais econômicas do que aquelas restritas à programação das máquinas estrangeiras poderiam ser desenvolvidas localmente levando em consideração as especificidades dos serviços que eram executados no Brasil. O bem conhecido esforço de projetar um sistema de minicomputador completo no Brasil executado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e pela Universidade de São Paulo (USP), e consubstanciado no projeto G-10, que integrava os interesses das duas universidades e da Marinha estimulou o governo a financiar várias outras iniciativas locais de concepção e projeto de artefatos de computação. Foi o caso, por exemplo, do processador de ponto flutuante desenvolvido pelo Núcleo de Computação Eletrônica da UFRJ para ser acoplado aos computadores IBM 1130 instalados no Brasil, aumentando-lhes a capacidade de executar operações aritméticas típicas de suas aplicações e assim adiando a necessidade de sua substituição por outros novos modelos importados. Foi o caso, também, do concentrador de teclados, um sistema mais econômico e mais simples do que as soluções oferecidas pelas multinacionais, por não ter terminais de vídeo e utilizar um único disco, mas igualmente eficiente, para a transcrição das declarações de renda pelo método digita-e-redigita-para-conferir que era a prática do SERPRO.[7]

Na década de 1970, o desenvolvimento local da tecnologia de computadores possibilitou o encontro de visões, interesses e identidades profissionais diversas. Os professores dos recém-constituídos cursos de pós-graduação em engenharia [8] estavam preocupados em criar um mercado de trabalho qualificado para os profissionais que formavam. Para eles, suas qualificações deveriam ser legitimadas por uma demanda no mercado de trabalho brasileiro por profissionais capazes de conceber e projetar computadores. Os militares julgavam importante saberem abrir as caixas-pretas eletrônicas instaladas em seus armamentos, especialmente depois que uma nova geração de fragatas com computadores a bordo foi adquirida da Inglaterra, tornando mais evidente a dependência de técnicos estrangeiros. Os administradores das empresas estatais entendiam que o leque de soluções possíveis para uma determinada aplicação se abriria muito mais se houvesse no país a capacidade de projetar também o hardware e o chamado software básico, mesmo que de pequenos artefatos computacionais.

Interação esclarecida para a construção de uma proposta de adaptação mútua e formação de um padrão normativo racional

Os protótipos ou produtos desenvolvidos na pesquisa não tinham sido inventados aqui. Eram, no entanto, engenharia reversa, feita por brasileiros, do que havia de mais atualizado na época em matéria de equipamentos que podiam ser adquiridos no mercado internacional. O trabalho de pesquisa empírica nas universidades e centros de pesquisa consistia justamente em aprender a fabricar aqueles misteriosos produtos, de tal forma que grupos de profissionais brasileiros adquirissem a capacidade de projetá-los. Nessa concepção de pesquisa, que situa a fronteira do conhecimento como uma fronteira local, os pesquisadores brasileiros descobriram como conceber e projetar produtos e também como ligar equipamentos de fabricantes diferentes para formar um único sistema. Disseminou-se pela comunidade acadêmica a preocupação com a dependência tecnológica: se passasse a depender cada vez mais de computadores e não soubesse fazê-los, o Brasil se veria na contingência de pagar o preço fixado pelos poucos países que sabiam como fazer os computadores. A partir de uma comunidade que praticamente não incluía empresários, a idéia de que o Brasil deveria fazer um investimento estratégico para superar a dependência tecnológica disseminou-se e tornou-se predominante entre os profissionais brasileiros de informática da década de 1970. Estava formado um consenso: nas palavras de um profissional de então, se na época inicial desses esforços (de desenvolvimento local de tecnologia de computadores), a industrialização e a comercialização efetiva do que fosse produzido eram ao mesmo tempo esperança e promessa, hoje se está cobrando uma decisão urgente e definitiva de que dependerá o êxito ou fracasso de dez anos de política científica e tecnológica para o setor (Franken, 1976). A partir de meados da década de 1970, um número cada vez maior de profissionais de informática passou a ser de opinião de que os esforços para que profissionais brasileiros participassem da concepção e projeto de uma tecnologia de minicomputadores não poderiam ter continuidade sem o envolvimento de empresas privadas.[9]

Os artigos da revista Dados e Idéias e as edições do jornal Datanews mostram o encadeamento lógico dos argumentos que circulavam na comunidade: 1) sem que um produto tecnológico seja produzido, vendido e mantido não se completa o ciclo do produto e não se pode ter segurança de que se detém a sua tecnologia e claramente as universidades e entidades estatais que até então vinham se envolvendo com a concepção e o projeto de produtos não tinham condições de completar o ciclo dos produtos; 2) não existiam empresas fabricantes brasileiras [10] e as empresas estrangeiras que tinham fábricas instaladas aqui (IBM, Burroughs e Olivetti) não dispunham de estrutura local de concepção e projeto de produtos nem estavam em princípio dispostas a montá-las dado que tradicionalmente recebiam os projetos de seus produtos já prontos, desenvolvidos nos laboratórios nas matrizes; 3) além disso, havia uma necessidade de cunho mais estritamente econômico que exigia a fundação de empresas com capacidade técnica própria local: o Estado brasileiro não teria condições de continuar acompanhando as necessidades financeiras crescentes dos trabalhos de pesquisa a fundo perdido, como vinha fazendo. Já havia sido atingido o ponto em que os recursos para concepção e projeto local de produtos teriam que vir, pelo menos em parte, diretamente do mercado usuário, e as empresas eram as instituições-organizações consagradas para desempenhar essa função. E, finalmente, o x da questão: 4) se, por um lado, o capital estrangeiro não se interessava pelo investimento em concepção e projeto de minicomputadores no Brasil, por outro lado, o capital privado nacional não se interessava em investir em empresas fabricantes de minicomputadores aqui, pois entendia que, em regime chamado de livre concorrência, a competição estava perdida a priori para as empresas estrangeiras.

Os anais dos SECOMUs, SECOPs e congressos da SUCESU, e os artigos publicados na revista Dados e Idéias e no jornal Datanews, mostram que, em 1976-77, uma conclusão lógica a partir dos argumentos mencionados se impunha praticamente como um consenso entre a comunidade de profissionais de informática: era preciso introduzir um artifício no jogo do mercado para que o investimento em concepção e projeto local de minicomputadores no Brasil se tornasse mais atraente para o capital privado nacional. Nos termos da tradição democrática liberal, um conjunto pequeno mas heterogêneo de atores professores, administradores de empresas estatais, militares técnicos dera início a um processo de interação esclarecida para construção de uma proposta de adaptação mútua e formação de um padrão normativo racional de conduta que cerceasse a liberdade como fonte de comportamento arbitrário, que na época passou a ser associado à importação arbitrária d e tecnologia, isto é, a importação de tecnologia decidida individualmente por cada empresa fabricante.

Entre o olho de Deus e o olho do Estado

Uma reserva (de mercado) para empresas que realizassem a pesquisa e o desenvolvimento de seus produtos no Brasil acabou sendo construída como um artifício acoplado ao mecanismo de mercado para que o investimento em concepção e projeto local de minicomputadores no Brasil se tornasse mais atraente para o capital privado.

Ancorado na comunidade de profissionais de informática, o órgão da Secretaria de Planejamento da Presidência da República (SEPLAN, atual Ministério do Planejamento) encarregado de racionalizar o uso dos computadores no âmbito do governo federal, denominado Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico de Dados (CAPRE), fez publicar no Diário Oficial da União, em 15 de julho de 1976, sua Resolução 1 anunciando que a política nacional de informática para os minicomputadores buscaria a consolidação de um parque industrial com total domínio, controle da tecnologia e decisão no país.[11] A esta resolução seguiu-se, em 1977, uma concorrência internacional para selecionar as empresas que poderiam fabricar e comercializar sistemas de minicomputadores no Brasil. Só as vencedoras poderiam entrar no mercado brasileiro de minicomputadores. Um critério anunciado na seleção das candidatas era o compromisso com pesquisa e desenvolvimento local de produtos e o correspondente plano de investimento da empresa (Helena, 1977). Resumindo rudemente um processo político-tecnológico cujos detalhes Vera Dantas (1988) registra com fluência e riqueza e que não se desenrolou sem combates, o principal deles envolvendo o minicomputador IBM/32 , foi com a recomendação da comunidade de profissionais que a CAPRE buscou um artifício o que veio a ser chamado uma reserva de mercado que tornasse atraente o investimento em pesquisa e desenvolvimento no Brasil. Foram vencedoras as empresas Edisa, Labo e SID.[12] O artifício mostrou-se eficaz para atrair o capital nacional, mobilizando-o para constituir empresas que assumiram o compromisso de investir em pesquisa e desenvolvimento de produtos no Brasil em troca de não enfrentarem a concorrência com produtos de concepção e projeto estrangeiros que seriam meramente montados aqui. A Tabela II ilustra a mobilização do capital nacional pelo crescimento do número de aberturas de empresas no setor após a Resolução 1 da CAPRE, uma vez que a quase totalidade das novas empresas era de capital nacional. Daí resultou a implantação da reserva de mercado para minicomputadores em 1977 e naquela ocasião, convém frisar, ainda não existiam microcomputadores. É i m p o r t a n t e observar que, embora a resolução incluísse microcomputadores, esta palavra referia-se ao pequeno mercado, classificado na categoria outros, de sistemas com processadores integrados dedicados, não dizendo respeito propriamente aos micros tais como os entendemos hoje estes surgiram depois, a partir de 1981, nas estatísticas da SEI e, rapidamente, isto é, em 1985, suplantaram os minis em termos de vendas ao mercado, conforme indica a Tabela III.

A política de reserva de mercado para o desenvolvimento da tecnologia de minicomputadores foi concebida naquela comunidade sui generis que nos 1970 reuniu um espectro mais ou menos amplo de p r o f i s s i o n a i s especializados em computação originários das universidades, das forças armadas e das empresas estatais de processamento de dados. Com o advento da democracia relativa, juntaram-se à comunidade jornalistas especializados, empresários, políticos e alguns líderes de associações profissionais. Pode-se conjeturar se a comunidade de profissionais de informática não começava a esbarrar nos limites da redoma da relatividade democrática, pois ela configurou, embora instável e fracamente, o que chamo de um coletivo técnica e politicamente agenciador, que poderia tender a se expandir, conferindo uma nova inflexão às tentativas de desenvolver tecnologia no Brasil. Durante os anos 1970 o caráter e a dinâmica da reserva de mercado dependeram das atuações dessa comunidade sui generis de profissionais brasileiros de informática.[13]

As atuações desse coletivo técnica e politicamente agenciador podem ser compreendidas em dois eixos. No eixo horizontal, esse grupo legitimava e propagava para a sociedade em geral a idéia da reserva de mercado dos minicomputadores. Os projetos de pesquisa discutidos e levados a cabo nas universidades, nas organizações militares e nas empresas estatais articulavam conceitos que o público em geral considerava (e ainda hoje considera) disjuntos, como, por exemplo, dependência tecnológica e ausência relativa de demanda por trabalho tecnicamente qualificado na indústria brasileira. No seio da comunidade articulações desse tipo, ligando maior autonomia tecnológica a aumento de oportunidades de trabalho mais valioso, legitimavam a idéia de reserva de mercado, facilitando sua disseminação. A comunidade tornava-se assim uma fonte de suporte político amplo e horizontal, que vinha de baixo, renovado por discussões vivas disseminadas e descentralizadas entre os profissionais, para que o governo brasileiro lançasse mão da reserva de mercado de minicomputadores como um expediente para diminuir a dependência tecnológica do Brasil. De acordo com o interesse de cada um, diminuir a dependência tecnológica do Brasil podia ser traduzido como gerar mais oportunidade de trabalho qualificado para brasileiros (professores), poder abrir as caixas-pretas instaladas nos navios de guerra (militares) ou processar mais eficientemente o imposto de renda (administradores públicos).

Por outro lado, no eixo vertical, aquele coletivo ou comunidade sui generis de profissionais de informática representava uma espécie de inteligência descentralizada que acompanhava e discutia a atuação do governo na implementação da reserva de mercado, avaliando continuamente sua adequação aos objetivos que a legitimavam. Em outras palavras, como bem mostram as coleções da revista Dados e Idéias e do jornal Datanews de 1975 a 1980, era também a comunidade q u e fazia a crítica da política de reserva de mercado de minicomputadores, discutindo sua implementação, criando focos a partir dos quais eram distribuídos o apoio ao que era visto como acerto e a oposição ao que era visto como erro, na rota para o objetivo mais ou menos consensual de diminuir a dependência tecnológica na concepção, projeto e fabricação dos minicomputadores.

Em plena ditadura, sob um manto de duas camadas, democracia relativa e alta tecnologia, a comunidade dos profissionais de informática nos anos 1970 tinha adquirido ainda que timidamente, como dito anteriormente, o caráter de um coletivo técnica e politicamente agenciador capaz de participar e interferir na política nacional e nos decretos governamentais. Nos termos da tradição democrática liberal, esse grupo havia rejeitado a crença de que, diante do olho de Deus, surgiria um comportamento harmonioso e frutífero para a sociedade brasileira naturalmente ajustado unicamente pela mão invisível do mercado, para abraçar a crença, igualmente moderna, na possibilidade de construir um olho do Estado que dirigiria a mão do Estado ajustando os comportamentos sociais e coibindo a liberdade arbitrária. Os profissionais de informática nos anos 1970 propuseram que no Brasil a questão tecnológica fosse tratada a partir da prática política que Yaron Ezhavi argumenta que preponderou nos Estados Unidos durante o século XIX e até meados do século XX, o instrumentalismo democrático.

Do instrumentalismo democrático relativo ao centralismo autoritário-tecnocrático

Mas como bem observou Sérgio Buarque de Holanda ([1982] 1936, p. 5) (no Brasil) os decretos dos governos nasceram ... só raras vezes da pretensão de se associarem permanentemente as forças ativas (da sociedade). No final dos anos 1970, sopesados os avanços e os retrocessos da democracia relativa, embora a evolução política geral apontasse para a democratização do país, as liberdades civis não estavam asseguradas. Até 1985 todos os órgãos governamentais eram obrigados a submeter suas contratações ao crivo do SNI, uma espécie de polícia política congregando militares e civis que se autodenomivam uma comunidade de informações e que pretendiam vigiar e punir todos que não repudiassem o que eles entendiam como ideologias de esquerda. Como o SNI trabalhava baseado em informes confidenciais isto é, o cidadão comum não tinha acesso à sua própria ficha a arbitrariedade e o autoritarismo ali concentravam-se especialmente. Em 1979 foi colocado na chefia da ditadura militar o general João Baptista de Figueiredo, até então chefe do SNI.

A partir de março de 1977, uma equipe contratada pelo Itamaraty pretendeu desenvolver em sigilo, sob a rede de proteção do SNI, um sistema de criptografia para troca de mensagens entre as embaixadas brasileiras, denominado Projeto Prólogo. O projeto tornou-se uma obscura zona de contato entre a comunidade de informações do SNI e os profissionais de informática. Não surpreende que o SNI julgasse estranho aquele coletivo sui generis, técnica e politicamente agenciador, cada vez mais heterogêneo, que reunia professores, militares e funcionários públicos discutindo política tecnológica (e econômica), elaborando sugestões e acompanhando suas implementações pelo governo ditatorial, fazendo, às vezes, críticas, embora relativas.

A chegada dos coronéis

Tão logo seu antigo chefe foi indicado para comandar a nação, a comunidade de informações do SNI formou a Comissão Cotrim, com a finalidade de investigar o setor de informática. Essa comissão, conhecida pelo nome do embaixador informante que dela fez parte, foi integrada por coronéis do SNI [14] e outros informantes que gravitavam em torno do serviço de informações, alimentando-o com seus informes confidenciais. Nas palavras de Dantas (1988, pp. 181-2),

(p)ara preparar a intervenção, o general Otávio Aguiar de Medeiros[15] decidiu formar uma comissão que fizesse um levantamento do setor de informática e propusesse um plano de ação destinado ao futuro governo de seu chefe, general Figueiredo. ... Obtida a autorização do general Figueiredo, formou-se a comissão com Cotrim, Dytz, Joubert, Loyola e Cuinhas. ... Para cobrir suas despesas ... Cotrim pensou primeiro em obter o dinheiro no BNDE ... mas Marcos Vianna (então presidente do BNDE) impôs condições ... Cotrim recorreu ao CNPq. A reação de (José) Dion (então presidente do CNPq) foi exatamente oposta à de Marcos Vianna: não precisou de muita conversa para entender que o embaixador (Cotrim) buscava, além de dinheiro, uma aliança.

Certamente aqui também podemos nos lembrar das observações de Sérgio Buarque de Holanda ([1936] 1982, pp. 3-11) sobre o personalismo exagerado (dos brasileiros) e suas conseqüências. À época, na comunidade de informática, era conhecida a simpatia entre Marcos Vianna e Ricardo Saur, secretário-executivo da CAPRE e notório desafeto de José Dion. A Comissão Cotrim teve como alvo principal os professores universitários e os funcionários da CAPRE que vinham até então implementando a política de reserva de mercado.

A comissão incluiu entre seus suspeitos os funcionários de outras organizações estatais não universitárias, como o SERPRO, a Digibrás e ainda outras dentro das próprias forças armadas, como o Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA). Segundo Dantas (1988, p. 183), (o)s membros da Comissão Cotrim preferiram convocar para depoimentos em Brasília todas as pessoas que julgassem necessárias. Começaram pelos pesquisadores e professores universitários. A Comissão Cotrim trabalhou durante alguns meses usando métodos e práticas policiais cuja falta de legalidade não constrangia seus coronéis. Tratou como suspeitos de crimes políticos os professores universitários, os gerentes de estatais e os próprios militares que compunham a comunidade de profissionais de informática evocada nos seminários e congressos e também nos artigos, declarações e discussões públicas da revista Dados e Idéias e do jornal Datanews. Sem constrangimento, os coronéis do SNI interrogaram de forma intimidante um grande número dos profissionais de informática e grampearam seus telefones.[16] E, logo, instalou-se entre estes um tal clima de medo que aos mais irônicos inspirou até brincadeiras de autêntico humor negro.

A partir daí, como resultado dessa ação repressiva, a participação dos profissionais de informática se arrefeceu. O levantamento da coleção da revista Dados e Idéias confirma tanto a transformação de enfoque quanto a mudança dos autores colaboradores após a interrupção de sua publicação de junho de 1979 a janeiro de 1980. Também nos seminários e congressos o ambiente era outro, tendo desaparecido as condições que davam vida às discussões acerca de como deveria ser uma política diferenciada para a construção de uma indústria de computadores no Brasil. Os seminários e congressos, bem como os artigos da revista, passaram a se restringir aos assuntos considerados estritamente técnicos. Compreende-se a facilidade com que os coronéis do SNI desfizeram a comunidade de profissionais de informática como um coletivo técnica e politicamente agenciador, bastando lembrar que naquela época eles podiam agir impunemente acima de quaisquer garantias civis.

Além disso, apresentada em relatório secreto ao general Figueiredo, a conclusão da Comissão Cotrim surpreendeu parte da já desmobilizada comunidade de profissionais de informática. O relatório concluía que o Brasil na realidade não possuía uma política de informática, tão tímida ela era ... deixando de lado as questões do software e da microeletrônica, o coração dos computadores.

Alguns enxergaram tal conclusão como uma vitória para as idéias até pouco meses antes defendidas na comunidade de profissionais de informática, um tanto docemente constrangidos pela sensação de terem conquistado, mesmo à revelia, novos e poderosos aliados no aparato repressivo da ditadura.[17] Os coronéis do SNI propunham a substituição da pequena e, dentro do governo ditatorial, sempre um tanto deslocada CAPRE por um novo órgão de alto nível hierárquico, com status de ministério, ligado diretamente ao general Figueiredo. Tal órgão, denominado Secretaria Especial de Informática (SEI), foi prontamente criado e seus cargos de direção ocupados pelos próprios coronéis do SNI que haviam integrado a Comissão Cotrim, a qual, em regime de substituição sucessiva por subalternos, lá permaneceu até sua aplaudida extinção em 1990.[18]

A chegada dos microcomputadores

No tempo em que só havia computadores de grande porte (mainframes), o mercado de computadores era um segmento muito especializado do mercado de bens de capital, e ao redor dele circulavam relativamente poucas pessoas. No Brasil eram ao todo poucos milhares de profissionais, mais propriamente algumas centenas. Para a imensa maioria das pessoas comuns, dos leigos, os computadores (de grande porte) eram máquinas esotéricas, cérebros eletrônicos mantidos em aquários refrigerados.

Hoje talvez as ovelhas clonadas em Edimburgo coloquem-se mais próximas da vida diária dos leigos do que na década de 1960 os mainframes conseguiam se aproximar da rotina cotidiana dos homens comuns.

Os minicomputadores, sistemas menores do que os mainframes, que proliferaram por cerca de uma década a partir do começo dos anos 1970, mantiveram as características básicas de um mercado especializado. É verdade que os minicomputadores aumentaram significativamente a diversidade de produtos, de fornecedores e de compradores, pois estão associados ao crescimento do mercado OEM e ao desenvolvimento dos VAR nos Estados Unidos.[19] Entretanto, se pensarmos em como eram tomadas as decisões de compra e venda, e nas condições de utilização e de manutenção dos minicomputadores, enxergamos ainda nitidamente uma continuidade mercadológica na produção e na comercialização entre eles e os computadores de grande porte: os minicomputadores ainda eram típicos bens de capital. Embora de preços e complexidades industriais de dez a cem vezes menores, os prazos de entrega, as condições de manutenção e os preços dos minicomputadores, que estavam nas casas das dezenas de milhares de dólares, eram sempre negociados entre vendedores e compradores especializados.

Já o microcomputador, como artefato, foi adiante do minicomputador e deixou definitivamente para trás os limites do ambiente decisório formal dos (CPDs), centros de processamento de dados, característico do tratamento por especialistas que se dá, ainda hoje, às aquisições de bens de capital pelas organizações grandes e médias. O microcomputador ocasionou a ruptura desses limites do computador como um bem de capital típico, dotando o artefato computador de características próximas às de um bem de consumo durável, um eletrodoméstico ou um telefone, ambicionado potencialmente por qualquer indivíduo. Como vimos, o fenômeno já aparece nas estatísticas feitas pela própria SEI (Tabela III), a partir das vendas do setor no Brasil correspondentes ao ano de 1981, e torna-se avassalador a partir do (IBM/)PC com a padronização de que se fez acompanhar tanto na arquitetura como no software. As técnicas de miniaturização tornaram possível disponibilizar em cima de uma mesa recursos para processar informação que antes não podiam ser mobilizados mesmo em máquinas que ocupavam salas inteiras. Os aumentos exponenciais da velocidade de processamento e da capacidade das memórias abriram possibilidades de concretizar aplicações antes somente imaginadas, como a substituição das máquinas de escrever, disseminando o computador de uma forma que poucos anos antes seria considerada ficção. O efeito da possibilidade de cada indivíduo dispor do computador como uma extensão de si próprio, e do seu próprio corpo, já descortinada pelo PC, provocou uma mudança de estrutura de mercado muito mais radical do que a mudança antes trazida pelos minicomputadores.

O microcomputador rompeu os limites restritos de um mercado de bem de capital especializado e provocou uma rápida mudança de toda a estrutura do setor no que se refere a qualificações de engenharia, industriais, comerciais e financeiras dos fornecedores e compradores. Por um lado, os custos e preços caíram mais uma ordem de grandeza, e a capacidade de processamento e a escala de produção subiram várias ordens de grandeza. Por outro lado, o micro passou a integrar o rol dos objetos de uso doméstico e pessoal ambicionados pelo leigo. No começo dos anos 1980, o computador saiu de um mundo fechado de milhares de profissionais para um universo aberto de milhões de leigos diretamente interessados e envolvidos.

A perda da transparência e a dispensa de prestar contas à sociedade passam do SNI para a política de informática

Esperava-se que o microcomputador, como fenômeno novo, exigisse mudança e renegociação da política que havia sido gestada na comunidade de profissionais de informática e posta em prática pela C A P R E . Mas, ao contrário da reserva de mercado para minicomputadores, que foi precedida de vários anos de discussões p ú b l i c a s em uma comunidade, a reserva de mercado para microcomputadores foi adotada sem discussão. Como integrantes do órgão de repressão de um regime ditatorial, os coronéis instalados na SEI não se julgavam responsáveis por apresentar a visão do olho do Estado com maior clareza, precisão e transparência possíveis para os cidadãos em geral e para os profissionais de informática em particular, nem tampouco julgavam-se obrigados a prestar contas e justificar, também com o máximo de transparência, o que fazia a mão do Estado, isto é, suas próprias ações, táticas e estratégias. O fenômeno microcomputador não existia e não havia sido considerado anos antes, quando os procedimentos para a operação da reserva de mercado de minicomputadores foram concebidos e discutidos na comunidade e postos em prática pela CAPRE, ao longo da década de 1970. Os coronéis do SNI, recém-instalados em seus novos altos cargos públicos na SEI, formalmente extinguiram e criaram órgãos e cargos, mas explicitamente não criaram uma política nova nem reformularam aquela recebida da CAPRE.

É justamente a ausência de transparência, a falta de obrigatoriedade de prestar contas e a inexistência de uma configuração descentralizada de cobrança que transformam o instrumentalismo democrático em centralismo autoritário-tecnocrático irreconciliável com a tradição democrática liberal. Desmobilizada a comunidade que configurava a cobrança descentralizada, e sendo ausente de seu ethos a obrigação da transparência e da prestação de contas à sociedade, os coronéis do SNI, em movimento típico de centralismo autoritário-tecnocrático, sem c o n s u l t a e sem explicação, estenderam para o mercado de microcomputadores os mesmos procedimentos que vinham sendo adotados com sucesso para incentivar a concepção, o projeto e a fabricação de minicomputadores no Brasil.

Conclusão

Nos anos 1980 os microcomputadores chegaram ao Brasil formando um segmento de mercado, antes inexistente, que começou a crescer a taxas muito altas abaixo da área reservada (eram sistemas completos menores do que os minicomputadores). Os sinais da grande mudança apareceram com a proliferação dos micros de oito bits utilizando o sistema operacional CP/M. Após o lançamento do (IBM/)PC podia-se perceber que a área reservada (mini) logo ficaria, como efetivamente ficou, comprimida entre o grande mercado anterior (grande porte, midi e pequeno) e o mercado de crescimento explosivo que surgira (micro). Ou seja, o aparecimento do microcomputador mudou uma estrutura de mercado até então estavelmente configurada.

No início da década de 1980 empresas e tecnologias brasileiras haviam ocupado o mercado de minis, sendo que as primeiras vinham cumprindo os compromissos, assumidos em 1977, de investir na formação de equipes técnicas. Nesses anos, Cobra, Edisa, Labo, Sid e Sisco apresentaram ao mercado e, com sucesso, venderam melhoramentos e upgrades dos modelos licenciados e novos modelos já inteiramente desenvolvidos pelas equipes brasileiras. Em cinco anos tornaram-se efetivamente independentes das suas fontes originais de tecnologia. Mas o mercado de microcomputadores, como mostra a Tabela III, logo interferiu fortemente no mercado de minis (e depois também nos de portes maiores), apresentando outra estrutura de produção e comercialização. Os microcomputadores requeriam organizações industriais e comerciais diferentes das dos minicomputadores, mais apropriadas a uma tecnologia muito mais padronizada que fazia com que diferenciais de custo e de preço, por exemplo, adquirissem uma importância muito maior, o que, por sua vez, requeria a revisão de uma série de decisões relativas à política da reserva de mercado como, por exemplo, que partes desenvolver e fabricar no Brasil e que partes importar. O primeiro problema estratégico enfrentado pela SEI foi decidir que reformulação deveria ser dada à política de reserva de mercado face às mudanças estruturais trazidas pelo emergente mercado de microcomputadores no começo dos anos 1980.

No entanto, embora tivessem escrito no relatório da Comissão Cotrim que consideravam a política anterior como inexistente ... de tão tímida (que era), os coronéis do SNI limitaram-se a dar continuidade a muitos (embora não a todos) procedimentos que vinham sendo adotados pela CAPRE. Os funcionários da CAPRE e da Digibrás forneceram tais procedimentos na forma de manuais de operação aos integrantes da Comissão Cotrim. Em outras palavras, os coronéis do SNI ocuparam a SEI de posse de manuais que sintetizavam detalhadamente os procedimentos (como delimitar segmentos de mercado, como realizar concorrências para a ocupação de segmentos de mercado, como especificar os investimentos de contrapartida pela entrada em segmentos reservados) para construir no Brasil uma indústria de minis, e não necessariamente de microcomputadores, a partir de uma reserva de mercado. A postura de aplicar sem discussão à industria deste novo objeto sociotécnico o microcomputador vinculado a um novo conjunto de empresas fabricantes e um universo aberto de milhões de potenciais compradores leigos os mesmos procedimentos de reserva de mercado concebidos e desenvolvidos para minicomputadores geraram efeitos muito diversos daqueles que vinham gerando para a indústria dos minicomputadores.

E é a partir daí que se pode compreender de forma mais abrangente todas as distorções e desvios acumulados, da SEI e dos fabricantes brasileiros de computadores, ocorridos ao longo da década de 1980, e reconciliar a reserva de mercado com a tradição democrática, evitando-se jogar o bebê fora na água suja do banho.

Até 1980 a reserva de mercado concretizara, em meio à ditadura, uma variante prática entre as concepções ideais de interação esclarecida e justificativa por indicadores de liberdade de ação presentes na tradição democrática liberal. Uma comunidade de profissionais de informática logrou estabelecer-se como um coletivo técnica e politicamente agenciador e construiu uma política industrial e científicotecnológica em intensa interação com um órgão governamental regulador, a CAPRE, resultando uma atuação final conjunta mediante uma espécie de divisão de trabalho em duas frentes. Numa delas, um coletivo amplo de profissionais mediava entre a reserva de mercado e a sociedade em geral, ao passo que, na outra, o órgão governamental mediava entre a reserva de mercado e os centros decisórios da ditadura. Como não havia hierarquia funcional formal previamente definida entre a comunidade de profissionais de informática como um coletivo técnica e politicamente agenciador e a CAPRE como órgão governamental, o f u n c i o n a m e n t o eficaz desse conjunto como mecanismo de desencadeamento de processos democráticos liberais dependia crucialmente de uma interação esclarecida, da existência de transparência, do enunciado claro de objetivos de transformação do q u a d r o socioeconômico e tecnológico e de configurações descentralizadas de cobrança de responsabilidade e prestação de contas ao público.

Conforme antes assinalado, nessa dupla mediação, a transparência, a obrigatoriedade de prestação de contas e as configurações descentralizadas são os elementos que marcariam a diferença entre esta espécie de instrumentalismo democrático relativo e o autoritarismo técnico-burocrático. Por um lado, a suposta visibilidade para o governo, através das estatísticas, das preferências dos cidadãos, isto é, a hipótese de que o governo pode saber e antecipar o curso desejável da ação pública, é usada para racionalizar as alegações do Estado de que ele está agindo para o bem dos cidadãos. Por outro lado, a visibilidade do Estado para os cidadãos (profissionais) é usada para mitigar estruturas centralizadas de ação estatal através da descentralização da obrigação de prestar contas (a atuação do órgão governamental deve ser transparente e questionável, e abertamente questionada, em qualquer ponto pela comunidade de profissionais). Na condução da política industrial e científico-tecnológica, o governo emprega os argumentos e justificativas gerados na comunidade profissional aberta para substanciar a alegação de que uma visão sinótica de todo o sistema o habilita a prover uma direção racional e a agir para o bem geral, enquanto a comunidade profissional aberta e seus agentes autorizados ou autoautorizados fora do governo verificam a obtenção de resultados apresentados pelo governo para fazer os atores governamentais prestarem contas em termos de padrões públicos de competência técnica e integridade, tornando-os efetivamente responsáveis por suas ações. Essa dinâmica de dupla mediação retroalimenta a busca de adaptações e de novas políticas industriais e científico-tecnológicas. Por sua vez, as opões racionais do próprio coletivo técnica e politicamente agenciador, para que constituam uma interação esclarecida ou formem um consenso ou padrão iluminado imitado ou aceito pela grande maioria, terão que ser transparentemente submetidas ao público em geral no papel mediador que o coletivo desempenha entre o campo (setor) específico da política específica em questão e a sociedade mais ampla.

Na concepção democrática liberal radical do equilíbrio involuntário, o papel do Estado está radicalmente limitado a fixar e padronizar coisas tais como palavras, regras, moedas, pesos e medidas para garantir a estabilidade e a regularidade do sistema. Nas democracias liberais modernas (cuja prática não se conforma à radicalidade de Hayek), o papel do Estado de fixar e ser guardião de padrões tais como pesos e medidas foi estendido para cobrir outras categorias de padrões relacionando assuntos como saúde, segurança e rotulagem de produtos. Conseqüentemente, em princípio, quando nos afastamos da radicalidade conceitual do equilíbrio involuntário, o papel do Estado ao fixar e ser guardião de regras para acesso a mercados administrar uma reserva de mercado não é incompatível com os ideais democráticos liberais, se forem por princípio asseguradas a transparência e a responsabilidade da ação centralizada via a obrigação do cultivo e da garantia de existência de configurações descentralizadas de cobrança e prestação de contas.

A impressão hoje comum da impossibilidade de reconciliar políticas industriais, inclusive de reserva de mercado, com as doutrinas democráticas liberais é fortalecida por um fator circunstancial e contingente da reserva de mercado que foi implantada para os computadores no Brasil: o ethos autoritário do SNI instalado na SEI levou esta última a não só deixar de fomentar, mas a reprimir discussões abertas sobre como tratar o fenômeno emergente do microcomputador, além de não considerar entre suas obrigações aquela de prestar contas a qualquer cidadão que não fosse seu superior na hierarquia de poder formalmente definida.[20] Foi somente a partir de 1980, com a entrada em cena dos coronéis do SNI e a criação da SEI, que a política de reserva de mercado abandonou um universo político brasileiro, que se abria, rompendo os laços com seu ethos comunitário original, civil e democrático, para se fechar no mundo estreito de uma versão brasileira de autoritarismo técnico-burocrático tendo sido justamente a partir daí que se impregnou com o germe que a fez fracassar.

NOTAS

  1. As abordagens sociotécnicas analisam as construções das ciências e das tecnologias como fenômenos em que o social e o técnico imbricam-se inseparavelmente em uma rede sem costuras. Não há então, ab initio, propriamente aspectos naturais ou técnicos, de um lado, e aspectos sociais ou políticos, de outro, que se relacionam mas que podem ser realmente separados. Em oposição a essa separação, as abordagens sociotécnicas propõem uma configuração sempre complexa, onde natureza e sociedade, tecnociência e cultura, estão indissociavelmente fundidas em algo híbrido que é mais do que um e menos do que muitos no ponto de partida analítico. Uma lista não exaustiva de pesquisadores com livros publicados neste campo incluiria David Bloor, Bruno Latour, Harry Collins, Michell Callon, John Law, Donna Haraway, Sandra Harding, Marilyn Strathern, Susan Traweek, Geoffrey Bowker, Donald MacKensie, Susan Star, Lucy Suchman e Sheila Jasanoff.

  2. Isto parece ser sugerido indefinidamente pelos veículos da chamada grande imprensa. Este é o tom de, por exemplo, Novas fronteiras: Israel, Irlanda, Índia e Finlândia acham o próprio caminho no mundo tecnológico (Veja, no 1.642, 29.3.2000).

  3. As características técnicas comparadas eram a capacidade de processamento (em mips), as capacidades das memórias RAM, ROM e de disco (em kbytes ou mbytes), e o número máximo de terminais. Ver Tigre (1984).

  4. Uma lista incompleta seria Adler (1991), Dantas (1989), Dytz (1986), Erber (1985), Evans (1995), Fleury (1987), Marão (1990), Mazzeo (1999), Meyer-Stamer (1990), Piragibe (1988, 1985), Schmitz e Casssiolato (1992), Tigre (1987, 1986).

  5. Friedrich Hayek, The road to Serfdom. Chicago, University of Chicago Press, 1944, 1969, p. 203, apud Ezhavi (1990, p. 19). Sobre a influência de Hayek entre importantes economistas brasileiros, ver Ganem (1999). 6

  6. Os SECOMUs são encontros anuais de computação na universidade, hoje realizados no âmbito dos congressos anuais da Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Antes da formação da SBC, em 1977, as reuniões eram feitas no âmbito do Conselho de Reitores. Os SECOPs eram encontros anuais dos administradores dos birôs estatais (federal, estadual e municipal) de processamento de dados.

  7. O SERPRO tinha uma divisão de pesquisa e desenvolvimento, e Dioclesiano Pegado foi o líder e principal responsável pelo projeto do concentrador de teclados (Concentrador de teclados: zero erro, Dados e Idéias, Rio de Janeiro, SERPRO, vol. 1, no 1, 1975, pp. 42-4). Os anais dos congressos e seminários da época, inclusive os da SUCESU, uma associação não acadêmica, registram uma grande quantidade de desenvolvimentos locais de artefatos de computação, fossem eles projetos originais, como estes dois, ou engenharia reversa de produtos estrangeiros já comercializados. 8

  8. Por um lado, a ditadura militar abjurava o ambiente acadêmico quando dali partiam críticas ao seu autoritarismo e às suas injustiças. Por outro lado, é certo que algumas de suas facções, não necessariamente centrais, apostavam no desenvolvimento tecnológico realizado a partir da criação de uma infra-estrutura de pesquisa e ensino de pós-graduação nas áreas de ciência e tecnologia. Nessa época houve grande expansão das escolas de pós-graduação de engenharia no Brasil, além de ter sido criada a Finaciadora de Estudos e Projetos (FINEP), destacando-se do então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) um cacife específico para que o Brasil entrasse no jogo de geração de conhecimento científico e tecnológico. Entre as pessoas-chave nesse processo estão Alberto Luís Coimbra, fundador da Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ), atual Instituto Luís Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia, e José Pelúcio Ferreira, funcionário do BNDE nomeado primeiro presidente da FINEP.

  9. Coleção da revista Dados e Idéias, do jornal Datanews, anais de congressos e seminários (SUCESU, SECOMU, SECOP) até 1980.

  10. A Cobra foi fundada em 1974, mas gastaram-se pelo menos dois anos em disputas internas no governo para que ela entrasse em operação.

  11. A Resolução 1 da CAPRE anunciava: O Conselho Plenário da CAPRE, no uso das atribuições que lhe confere o decreto no 77.118 de 1976, ... , considerando ... que o mercado de computação correspondente aos mini e microcomputadores e seus periféricos, equipamentos modernos de transcrição e transmissão de dados e terminais somente agora começa a se desenvolver e que é nesta área que os investimentos em pesquisa e desenvolvimento privados e governamentais têm sido feitos, com resultados que capacitam o país para consolidar real absorção de tecnologia ... resolve recomendar ... que a política nacional de informática para o mercado de computação referente aos mini e microcomputadores, seus periféricos, equipamentos modernos de transcrição e transmissão de dados e terminais se oriente no sentido de viabilizar o controle das iniciativas visando obter condições para a consolidação de um parque industrial com total domínio, controle da tecnologia e decisão no país...

  12. Os fabricantes de minicomputadores que tiveram acesso à reserva de mercado (de minicomputadores) acabaram sendo a estatal Cobra e quatro empresas privadas brasileiras: as vencedoras da concorrência, Sid, Edisa, Labo e mais uma, a Sisco. A Edisa, a Labo e a Sid foram fundadas para entrar na concorrência internacional e elas três assim como a Cobra, que já existia antes da concorrência negociaram contratos de licenciamento e compra de tecnologia estrangeira para iniciar suas atividades. Todas elas também assumiram e cumpriram o compromisso de contratar no Brasil as equipes técnicas para atualizar os modelos licenciados e projetar novos modelos, tornando-se já no começo dos anos 1980 independentes de suas fontes iniciais de tecnologia estrangeira. As fontes iniciais de tecnologia foram a Ferranti (inglesa) para a Cobra, a Logabax (francesa) para a Sid, a Fujitsu (japonesa) para a Edisa, e a Nixdorf (alemã) para a Labo. Logo em seguida à concorrência, a Sisco foi autorizada a entrar no mercado de minicomputadores com clones do sistema Eclipse da Data General. Em contraste com as outras quatro, a Sisco não assinou contrato de licenciamento com uma fonte estrangeira de tecnologia. Com isso legitimou sua entrada na área reservada do mercado sem participar da concorrência, alegando estar de fato à frente das vencedoras, no objetivo de desenvolvimento local de tecnologia, por haver investido e feito a engenharia reversa da versão original do sistema sem desrespeitar os direitos do fabricante norte-americano.

  13. A entidade formalmente institucionalizada que mais atuou como núcleo do que aqui chamei de um coletivo técnico e politicamente agenciador foi, a partir de meados da década de 1970 e até a implantação da reserva para minicomputadores em 1977, a Sociedade Brasileira de Computação (SBC). Já no final da década de 1970 eram conhecidos os vínculos de diversas associações com a política nacional de informática. José Martinez ( 1980, p. 30) registra, além da SBC, ABINEE, ABICOMP, APPD, ASSESPRO, SUCESU e outras, envolvendo alguns milhares de pessoas.

  14. Coronéis (do SNI e, depois, da SEI) era a expressão de conotação negativa que, à boca pequena, profissionais e empresários usavam para se referir a eles. Quem ostentava mais poder entre eles, Joubert de Oliveira Brízida, era então tenente-coronel do Exército (Dantas, 1988, p. 173). 15 16

  15. Novo chefe do SNI, cargo do qual o general Figueiredo saiu para o ocupar a presidência da República.

  16. Muitos detalhes dessa ação repressiva podem ser encontrados em Vera Dantas (1988, cap. 9, pp. 172-207). Já aliviado por ter sido um dos primeiros a prestar depoimento, José Ripper que dirigia o programa de fibras óticas da Unicamp em uma festa de réveillon em sua casa, divertiu-se assustando um amigo especialmente apavorado: Você vai ser chamado para depor no SNI. E quem lhe dedurou foi o Mammana. O outro entrou em pânico, passou amargamente as primeiras horas do novo ano e só sossegou quando Ripper confessou-lhe que estava brincando. Aliás, o que Cláudio Mammana realmente denunciou e para a própria Comissão Cotrim foi esse clima de medo. Ao depor, acusou seus métodos de provocarem total intranqüilidade nos meios acadêmicos e ainda disse se considerar sob risco pelo fato de estar ali, no SNI. Os militares contestaram de forma provocativa: lembraram que essa visão distorcida do SNI era coisa de esquerdista. Mammana não se deu por vencido: Os senhores me desculpem, mas não é bem assim. Minha mãe, que não tem nada de esquerdista, me mandou tomar cuidado e ainda me fez usar este santinho, disse, exibindo um escapulário que trazia na carteira de documentos.

  17. Como exemplo de boa vontade exagerada diante de quem chegou fazendo interrogatórios amedrontadores e grampeando telefones, ver, por exemplo, a chamada da reportagem de José Martinez (Uma comunidade à procura de caminhos, op. cit., p. 26): Refletindo os diversos conflitos de interesse no âmbito da indústria de informática, têm surgido no Brasil, principalmente nos últimos quatro anos, entidades de classe em defesa de posições bem localizadas. Com base em plataformas políticas que variam do extremo conservadorismo até ousados ideários, algumas delas representam empresas, outras pontos de vista pessoais, não faltando quem diga representar órgãos públicos. Como ponto em comum, todas parecem contar com o reconhecimento informal do governo, através da nova Secretaria Especial de Informática (SEI), que as tem convidado para trocas de idéias.

  18. Foram eles os coronéis Joubert, Dytz e Ezil, que sucessivamente chefiaram, de fato e/ou de direito, a SEI, exceto num curto período durante o governo Sarney, enquanto Renato Archer respondia pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia, do qual a SEI havia passado a fazer parte após a saída do general Figueiredo. Numa manobra de apropriação do espaço público pelos interesses privados e pessoais que mais uma vez nos lembra as sínteses sociológicas de Sérgio Buarque de Holanda, no começo dos anos 1980 todos os cargos-chave diretamente ligados à política de informática foram ocupados por homens ligados à polícia política da ditadura que integraram a Comissão Cotrim, que os criou ou reformou. Reis Loyola, também integrante da Comissão Cotrim, presidiu a Cobra até se desentender com seus colegas, e o embaixador Cotrim foi nomeado presidente da Digibrás.

  19. O desenvolvimento do mercado OEM (Original Equipment Manufacturer) criou as facilidades, antes praticamente inexistentes, para o aparecimento do integrador independente de sistemas ou VAR (Value Added Retailer), que desenvolve e comercializa com marca própria um sistema cujas diversas partes ele compra de fabricantes diferentes no mercado OEM. O desenvolvimento do mercado OEM nos Estados Unidos está associado ao crescimento de empresas de Massachusetts como a Digital (recentemente adquirida pela Compaq) e a Data General (já desaparecida), que na década de 1970 dinamizaram o mercado de computadores vendendo unidades centrais de processamento (CPU) para quem quisesse independentemente adicionar software, periféricos e marca própria, compondo um sistema especializado. Por exemplo, valendo-se do mercado OEM, uma empresa desenvolve um software de controle de caixas-dágua para grandes prédios e comercializa com sua marca um sistema composto de diversas partes de hardware adquiridas de diversos fabricantes e integradas em um sistema único pelo seu software.

  20. A Secretaria Especial de Informática (SEI) foi instituída como uma secretaria ligada diretamente à presidência da República com status de ministério.

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Recebido para publicação em junho de 2002. Aprovado para publicação em setembro de 2002. vol. 10(2):657-81, maio-ago. 2003

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