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Colaboração: Rubens Queiroz de Almeida
Data de Publicação: 18 de Julho de 2004
Fonte: Comciência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, edição de junho de 2004
Um dos argumentos mais freqüentes empregados pelos defensores do modelo de software proprietário é que o software livre inibe a inovação. Segundo eles, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento dificilmente seriam recuperados em um ambiente livre. Em conseqüência, um cenário pouco propício à inovação e ao desenvolvimento seria criado.
Um fator que raramente é mencionado por defensores tanto do software livre quanto do proprietário é que a conexão em rede propiciada pela internet conferiu um enorme poder ao indivíduo, que muitas vezes trabalha sozinho que deseja compartilhar suas idéias e conhecimento com pessoas que possam compreendê-lo ou mesmo admirá-lo. Essas pessoas, coletivamente ou isoladas, podem criar conhecimento, às vezes de forma tremendamente inovadora. Se tiverem as necessidades básicas de sobrevivência atendidas, esses indivíduos poderão se dedicar a criar software de todos os tipos e com qualidade.
A década de 80 era caracterizada em grande parte por ilhas de computadores, isolados uns dos outros, criados por fabricantes diferentes e que se interessavam - antes de tudo por razões econômicas - na manutenção e consolidação dessas ilhas, criando mercados cativos. Os computadores se comunicavam, na maior parte dos casos, com outros computadores dentro das próprias empresas, através de linhas de comunicação também de alto custo. Enfim, uma situação que em nada encorajava a colaboração, compartilhamento, solidariedade e amizade, tão características do movimento de software livre.
Dentro desse panorama, em que os computadores pessoais começavam a aparecer, desempenhando ainda tarefas simples e de pouca complexidade computacional, a qualificação dependia antes de tudo de se estar empregado em um local que possuisse um computador de grande porte e caríssimo. A qualificação dependia do emprego, ou seja, era acessível a muito poucos.
A internet, que chegou ao Brasil no final da década de 80, também para poucos, principalmente universidades e órgãos do governo, gradualmente mudou esse perfil, permitindo o acesso universal. Em 2004 ,são inúmeras as maneiras de se conectar à internet, por preços muito acessíveis para a classe média. O GNU/Linux, que nasceu e se consolidou na década de 90, veio a se tornar um mecanismo valioso para a disseminação de idéias. Com código fonte livre, de qualidade, um coordenador, Linus Torvalds, soube captar de maneira genial o poder de comunicação da internet para impulsionar de forma nunca vista o revolucionário sistema GNU/Linux. Linus Torvalds soube aceitar colaborações, valorizar competências e aglutinar ao seu redor os melhores entre os melhores. A internet ofereceu ao desenvolvimento do Linux os melhores do mundo e o resultado está mudando radicalmente diversos conceitos firmemente estabelecidos.
Linus Torvalds, em parceria com o jornalista David Diamond, escreveu um livro autobiográfico cujo título é Just for fun, ou Só por prazer, como publicado no Brasil. Este título, por si só, já diz muita coisa. Um produto, desenvolvido "só por prazer", por milhares de pessoas, é capaz de representar uma séria ameaça a monópolios firmemente consolidados, com centenas de bilhões de dólares em caixa. Monópolios conseguidos com manobras que evocam muitas das piores práticas de que os seres humanos são capazes. É reconfortante ver que um poder equivalente está sendo construído baseado apenas na solidariedade, compartilhamento, amizade e criatividade.
Mas o Linux é um exemplo muito conhecido. Gostaria de ilustrar o tema deste artigo, software livre e inovação, com outro pequeno exemplo, baseado em uma experiência com a biblioteca digital da Unicamp, criada exclusivamente com software livre. Este sistema chama-se Nou-Rau e consiste em programas em PHP que se ligam a diversos outros programas já existentes, como o banco de dados PostgreSQL. Para a construção do sistema Nou-Rau nós fomos extremamente privilegiados, pois muitos dos componentes de que necessitávamos já existiam. Embora seja usado hoje como uma biblioteca digital, pela Unicamp e por um número crescente de universidades e instituições diversas, almejava-se apenas criar algo que permitisse armazenar documentos no formato digital e criar um índice do conteúdo destes documentos, permitindo a busca e recuperação dos dados.
Queríamos também ser muito flexíveis, não impor limites rígidos sobre o tipo de documento digital aceito. Sendo assim, o sistema aceita qualquer tipo de documento, embora restrições possam ser criadas conforme o desejo do mantenedor do sistema. O software de indexação, htdig, indexa documentos digitais no formato texto puro. Dessa forma, precisávamos encontrar softwares que convertessem diversos formatos para o formato texto puro, ou ASCII. Para converter documentos criados pelo aplicativo Microsoft Word, encontramos o antiword. Precisávamos de um banco de dados para armazenar as informações chave de cada documento, informações para gerenciamento etc: usamos o software PostgreSQL, de estabilidade e qualidade comprovada. E assim foi, até acharmos todos os componentes que precisávamos. Todos os componentes livres e gratuitos.
O sistema Nou-Rau, desde sua concepção original, teve duas metas básicas: não replicar esforços já existentes e ser tão simples e fácil de se usar quanto possível. Ao final de nossa busca pela internet, descobrimos que a maior parte do trabalho já estava pronta. Faltava apenas fazer uma pequena parte, um programa que nos permitisse harmonizar todos os componentes e chegar onde queríamos. Mas tudo isso é mais fácil de se ver com números. A tabela abaixo lista o número de linhas de (código, documentação, comentários etc.) de todos os programas utilizados e o número de caracteres.
Aplicativo | Nº linhas código | Nº caracteres |
---|---|---|
Antiword | 44.491 | 1.444.534 |
Apache | 40.053 | 4.165.130 |
dvi2tty | 7.245 | 226.850 |
htdig | 461.943 | 11.648.195 |
perl | 1.530.939 | 50.113.497 |
php | 836.506 | 24.436.796 |
Postgresql | 1.787.926 | 61.370.089 |
pstotext | 4.734 | 144.623 |
recode | 205.215 | 8.000.820 |
xlhtml | 37.830 | 1.167.848 |
xpdf | 101.163 | 2.846.137 |
nou-rau | 11.203 | 354.583 |
Combinando-se o número de linhas de todos estes programas, inclusive a documentação, comentários e outros arquivos incluídos na distribuição dos produtos, chegamos a um arquivo de 158MB de tamanho, com 5.058.045 linhas, ou 165.605.130 caracteres. O sistema Nou-Rau por sua vez consiste de 11.203 linhas e 354.583 caracteres. Temos então que o sistema Nou-Rau, em termos percentuais, representa 0,21% do total. Em outras palavras, a criação de um sistema que em maio de 2004 abrigava cerca de 7.5GB de documentos, entre os quais 2.833 teses e dissertações defendidas na Unicamp, representando o trabalho árduo de pesquisa de milhares de alunos e seus orientadores, integralmente disponível na internet, para qualquer pessoa, indistintamente, requereu para sua criação apenas 0.21% de esforço adicional sobre componentes já existentes. O impacto de todo esse conhecimento, que a Unicamp e outras universidades estão publicando na internet, é difícil de ser mensurado. Mas julgando pela taxa mensal de visitas à biblioteca digital da Unicamp, que hoje se situa em torno de 60.000, não há como negar seu impacto positivo. O conhecimento está liberto, sem fronteiras. Saiu dos limites do papel e trafega pelo ciberespaço livremente.
Onde repousa o poder de inovação do software livre? Justamente em podermos caminhar sempre para a frente. Não precisamos recriar idéias. A partir do trabalho que milhares de outras pessoas criaram, com uma pequena contribuição, genialidade, inovação, temos a liberdade de criar, de nos concentrar em problemas novos e suas soluções. A primeira versão do software Nou-Rau foi criada em poucos meses, por apenas uma pessoa e com poucos recursos financeiros. A inexistência dos componentes livres do componente Nou-Rau possivelmente iria inviabilizar todo o projeto e possivelmente não teríamos hoje acesso a um acervo tão rico de informações.
Mas o exemplo do Nou-Rau não é um caso isolado. Muito possivelmente todos os componentes empregados também se utilizaram de idéias de outros programas e pessoas. É praticamente impossível delimitar o ciclo de relacionamentos entre todos esses produtos e pessoas. Mas uma coisa é certa, tudo foi possível devido à filosofia do software livre, na qual nada precisa ser escondido, em que a competência é razão de orgulho e é comprovada exibindo-se o trabalho realizado. Nessa filosofia, ajudar faz bem. Idéias que são comunicadas e usadas por outros são razão de orgulho para quem as criou.
A Unicamp divulga ativamente o sistema Nou-Rau. Quanto mais pessoas usarem o sistema, maior a comunidade de desenvolvedores e interessados em seu crescimento e aperfeiçoamento. Quanto maior o reconhecimento, maior a possibilidade de se obter até mesmo apoio financeiro de entidades de fomento. Quanto mais usuários, maior o conhecimento compartilhado e, quem sabe, as nossas possibilidades de melhorarmos diversos aspectos de nossas vidas e de nossa sociedade.
Dentro da ótica de uma escola ou universidade, cujo papel é formar pessoas e criar conhecimento (e não desenvolver ou vender software), esse modelo é totalmente coerente. O software é um meio para se alcançar um fim e seu desenvolvimento é válido desde que alinhado com os objetivos finais da instituição. A criação do software não é mais uma atividade que requer investimentos monstruosos. Tudo o que se necessita é criatividade e vontade de aprender para, quem sabe, revolucionar o mundo. Certamente Linus Torvalds nunca pensou em todas as implicações de seu trabalho quando estava programando, só por prazer, em um quarto escuro na Finlândia. Afinal de contas, como dizem os hackers, programar é a melhor coisa que se faz vestido.
O software livre prejudica a inovação? Conta outra....
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