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Software Livre - Bom, bonito e barato

Colaboração: Rubens Queiroz de Almeida

Data de Publicação: 15 de Janeiro de 2000

No início da era dos computadores, dos poderosos e inacessíveis mainframes, como são mais conhecidos, apenas empresas com um caixa reforçado podiam contar com esta importante ferramenta. Além do custo exorbitante do hardware, o software também não ficava atrás. O alto custo se devia ao fato de que tanto o hardware quanto o software eram obrigatoriamente adquiridos junto ao mesmo fornecedor. A solução fornecida era um pacote fechado e a única alternativa era aceitar calado o que era imposto pelo fabricante.

Felizmente, com a redução do custo dos computadores e também pela disseminação do uso do Unix no mundo acadêmico, o panorama começou a mudar. A empresa AT&T, onde nasceu o Unix, por força da legislação existente que a impedia de comercializar software, tornou o Unix e seu código fonte disponível a universidades e instituições de pesquisa. Bastava pagar o custo da fita e as despesas de transporte. Em pouco tempo o Unix se tornou extremamente popular no meio acadêmico. Dentro do espírito de colaboração vigente neste meio, vários programas começaram a ser desenvolvidos e compartilhados sem custo algum. O objetivo maior era ajudar e não obter ganho financeiro imediato. Deste início modesto, na década de 70, até os dias de hoje, o software livre percorreu um longo caminho. O mundo do software comercial se sente ameaçado por esta proliferação de software de boa qualidade e realiza inúmeros ataques tentando minar a credibilidade do software livre.

Os argumentos utilizados com mais frequência contra o software livre são aqueles que afirmam que sua qualidade deixa a desejar e que o suporte é nulo ou inexistente. Não vou chegar ao exagero de afirmar que todo o software livre é de excelente qualidade e que pode ser usado em total confiança. Mas também não ouso afirmar que todo software comercial é confiável e representa um excelente retorno no investimento (às vezes exagerado) realizado. O importante é que o acesso aos computadores e consequentemente à informação que eles armazenam, seja com software proprietário ou livre, é vital. O computador é um instrumento de acesso à informação, vital à nossa educação e formação continuada. O acesso a este instrumento deve ser o mais difundido possível a todos. Porque insistir com soluções dispendiosas quando funcionalidade equivalente ou até mesmo superior pode ser alcançada com sistemas totalmente configurados com software livre? Nos próximos parágrafos faço um relato resumido de algumas experiências bem sucedidas no uso de software livre.

Considero-me um privilegiado por ter sido um dos primeiros a ter acesso à Internet no Brasil, já em 1990. Na época o programa que fazia o maior sucesso chamava-se Archie. Este programa fornecia informação sobre programas disponíveis para download existentes na Internet. As dificuldades entretanto eram imensas. A nossa conexão com a Internet à época era de 2400 kbps. O acesso interativo ao programa Archie era praticamente impossível, tanto pela lentidão de nosso acesso quanto pela sobrecarga do servidor Archie, que era extremamente útil e popular. Isto entretanto não nos fazia desistir. O banco de dados Archie podia também consultado via email. A pergunta era enviada e no dia seguinte, com sorte, recebiamos uma lista com sites ftp que continham algo mais ou menos na linha do que buscavamos. Embora isto tudo possa parecer extremamente rudimentar na Internet de hoje, povoada de websites, o nosso deslumbramento com o potencial desta ferramenta fantástica era quase que ilimitado. Tínhamos um problema, não tínhamos o dinheiro, tudo bem. O super Archie estava ali mesmo para nos ajudar.

Um dos primeiros problemas que resolvemos desta forma foi quando realizamos a migração de computadores Digital/VMS para uma arquitetura mais nova. Um dos problemas é que as unidades de fita de rolo, não mais seriam suportadas no novo equipamento. Uma das alternativas era copiar todas as fitas, uma a uma, para disco e em seguida gravá-las na nova unidade de armazenamento. Tal procedimento, é claro, era inviável. Eram centenas de fitas e certamente, se houvesse uma alternativa, seria a mais completa salvação. Bom, o único computador onde tínhamos uma unidade de fita de rolo que poderia ler as fitas gravadas no sistema VMS era um equipamento da Sun, rodando o venerável SunOS. Restava então achar algo que entendesse o formato de backup do sistema Digital/VMS e o gravasse em um sistema Unix, ou seja, fazer a transferência do VMS para o Unix. Consultamos o Archie com o termo "vmsbackup" e surpreendentemente, achamos um programa com este nome que fazia exatamente o que desejávamos. Totalmente gratuito, 100% funcional, sem bugs, não pagamos nada por ele e economizamos diversas, possivelmente centenas de horas de trabalho. Vitória!

Outro problema relativamente sério que resolvemos com o auxílio de software livre foi a questão do backup. De algumas poucas estações de trabalho adquiridas em 1990, o nosso ambiente, com a redução do preço dos computadores, cresceu enormemente. Com este crescimento veio a necessidade de se fazer o backup de dados distribuídos por vários equipamentos. O Unix provê mecanismos de backup via rede mas esta alternativa simplesmente não era viável devido à lentidão da unidade de fita (256kbps) e ao volume de dados. O tempo dispendido era simplemente inaceitável. Além do mais existia a questão da catalogação dos backups. As fitas DAT 8MM que utilizavamos então podiam armazenar até 5GB. Com as fitas de rolo, cuja capacidade era menor, por volta de 150MB, a prática era se usar uma fita por sistema de arquivos. Bastava colar uma etiqueta na fita dizendo a data do backup, nível e o nome do sistema de arquivos: "/usr/Backup nível 0/10/11/1990". Uma fita DAT podia conter dezenas de sistemas de arquivos. Sem um sistema de catalogação eficaz, o backup até que podia ser feito porém o restore consumiria um tempo inaceitável. Novamente, sem os recursos financeiros para a aquisição de uma solução comercial, a alternativa que nos restava era achar um software livre que atendesse a estas necessidades. Após alguns estudos e pesquisa, descobrimos o software Amanda, acrônimo de Advanced Maryland Network and Disk Archiver. O Amanda utiliza vários conceitos inovadores. O backup de diversas máquinas da rede é feito primeiramente no disco do servidor. Desta forma diminui-se o tempo gasto, visto que vários backups podem ser realizados em paralelo. Uma vez gravados os backups no disco, faz-se então a transferência destes arquivos para a fita. Adicionalmente, no início de cada fita é gravado um cabeçalho, que permite, durante operações de restore, que se posicione a fita no local desejado em poucos segundos. Tivemos algum trabalho para adaptá-lo ao nosso ambiente, porém com a ajuda dos desenvolvedores e o acesso ao código fonte, conseguimos colocá-lo em produção, onde já é utilizado com sucesso há vários anos.

Um outro problema que resolvemos com auxílio de software livre foi a indexação de todos os sites Web de nossa instituição. A indexação de um único servidor Web é tarefa trivial, existe uma grande variedade de programas livres disponíveis para isto. Como possuímos um grande número de servidores Web, por volta de 300, num total de 200.000 páginas Web, tínhamos o problema de acesso a toda esta informação. Precisavamos criar um serviço de busca e indexação semelhante ao oferecido pelo Altavista ou Excite. Já possuíamos o excelente software Altavista para indexação do acervo da biblioteca. Poderiamos facilmente usar o Altavista para indexar todos os sites, porém nos deparamos com um problema. A nossa versão do software roda exclusivamente em plataforma Digital. O equipamento de que dispunhamos não comportava discos adicionais, e não dispunha de potência computacional suficiente para suportar a carga adicional de processamento. Após alguma pesquisa na Internet, descobrimos o software ht://dig. A configuração do software foi feita por nosso guru em apenas uma manhã, e após alguns ajustes com os webdesigners, em uma semana estava tudo funcionando perfeitamente. Novamente, não precisamos gastar nada para colocar no ar um serviço extremamente útil à nossa comunidade.

Um relato de todos os problemas que resolvemos com software livre seria praticamente impossível. São diversos os casos bem sucedidos e realmente é difícil nos lembrarmos de todos eles. Devido ao orçamento limitado, adotamos, com sucesso, uma estratégia totalmente diversa das maioria das empresas. Sempre que nos deparamos com um problema, procuramos por uma solução livre. Em caso de insucesso (o que é cada vez mais raro), buscamos então, com muita relutância, uma alternativa comercial. Existe também outra alternativa, que é convencer seu chefe de que o que você encontrou na Internet é exatamente o que ele ou ela precisa ;-)

Na questão do suporte a história não poderia ser diferente. Em diversas ocasiões, mesmo com contrato de suporte com fabricantes de produtos comerciais, a solução foi encontrada através da Internet. Problemas relativamente simples, para os quais o nosso canal oficial afirmou não possuir uma solução, foram resolvidos com apenas algumas mensagens enviadas a listas de discussão e newsgroups da Usenet. Após um certo tempo passamos a também adotar como regra utilizar os recursos da Internet primeiro e apenas em último caso recorrer ao fabricante.

Como não poderia de ser, o acesso ao código fonte representa uma vantagem e uma segurança para o usuário. Um dos sistemas Unix que utilizávamos apresentava um bug incômodo. Se por alguma razão um administrador estivesse logado em uma tela como o superusuário (root) e houvesse uma queda de energia ou algo parecido na estação de trabalho remota, a janela, onde o usuário root estava logado, não era desconectada pelo sistema servidor. Ela ficava "vagando" pelo sistema operacional. Um usuário normal que logasse poderia receber de presente esta tela já com o root logado. Felizmente nenhum de nossos usuários se aproveitou desta situação para realizar estragos no sistema e fomos mesmo notificados do fato várias vezes.Tentamos então descobrir como resolver o problema. Consultamos algumas listas e a resposta veio quase que imediatamente. Não havia uma correção oficial da empresa e para resolver o problema precisavamos alterar o código fonte. O problema é que a licença de acesso ao código fonte custava algumas centenas de milhares de dólares, ou seja, fora de questão. O único caminho que nos restou foi esperar por uma nova versão e neste meio tempo torcer para que não ocorresse nada mais sério. Felizmente conseguimos sobreviver a isto. Não preciso nem dizer o que aconteceria se um problema semelhante ocorresse em sistemas Linux. Em questão de algumas horas o problema certamente seria resolvido.

Se há alguns anos atrás a localização do software livre era feita por meio de mecanismos rudimentares e ineficientes, o mesmo já não ocorre hoje. No mundo Linux temos centenas de portais, onde toda esta informação encontra-se muito bem organizada. O site Freshmeat , por exemplo, é um ponto obrigatório para quem deseja implementar soluções baseadas em software livre. Todos os dias são exibidas na primeira página as novidades (e que novidades) do mundo do software livre.

Instalar software livre também ficou infinitamente mais fácil. Se antes o processo de instalação envolvia a leitura da documentação, compilação, acerto no código fonte e muito mais, hoje em dia, em 99% dos casos, tudo que é necessário é emitir um único comando. Dos softwares citados anteriormente, apenas o programa vms2unix (a demanda não deve ser muito alta mesmo) não se encontra disponível para o ambiente Linux. Instalar o Amanda ou ht:/dig não requer quase que trabalho algum. Estamos vivendo em um mundo em que temos uma grande variedade de software livre à nossa disposição, de uma qualidade cada vez maior, com os quais podemos experimentar à vontade e modificar da maneira que desejarmos.

Tudo que foi dito acima está longe de ser um caso isolado. A Internet, desde seus primórdios, funciona baseada quase que exclusivamente em software livre. O protocolo de comunicações TCP/IP, pedra fundamental da Internet, é livre. O software Bind, que nos ajuda a localizar computadores na Internet, e o programa sendmail, de longe o mais popular processador de mensagens de correio eletrônico, também são livres. O servidor Apache, é o preferido por 55% dos sites na Internet. Em suma, sem software livre, a Internet pára. Se a Internet, que é um enorme sucesso, funciona com software livre, porque a sua empresa não pode copiar o modelo?

É evidente que ainda possuímos diversos softwares comerciais em uso em nosso ambiente, particularmente nos ambientes de computação pessoal. O que é notável entretanto é que nos últimos tempos, um crescente número de usuários voluntariamente, realiza a substituição de seu ambiente de software proprietário por alternativas livres, com particular destaque para o Linux. Em contraste com a situação de alguns anos atrás, onde sistemas Unix e software livre eram utilizados por muito poucos, a popularização e crescente aperfeiçoamento desta alternativa faz com sistemas totalmente baseados em software livre sejam uma solução viável para uma ampla faixa de usuários. A combinação Conectiva Linux, com suporte total à acentuação e com um grande número de documentos e tutoriais traduzidos para o português,com StarOffice, é uma solução de alta qualidade para a computação pessoal. Basta ousar um pouco. Após as dificuldades iniciais, os ganhos obtidos pela utilização da grande variedade de software livre são substanciais.

Concluindo, o software livre certamente já provou seu valor e qualidade. O software livre não exclui, nem deve excluir, as alternativas comerciais ou vice-versa. O melhor dos mundos será aquele onde existam alternativas adequadas a todos os tipos de necessidade e recursos. Gerentes de informática que optem por uma equipe de informática reduzida ou disponham de mais dinheiro do que competência técnica podem optar, com um mínimo de riscos, por alternativas comerciais estabelecidas e comprovadas. Os mais engenhosos e empreendedores poderão optar com sucesso por alternativas livres. O mais importante é que existam alternativas. Imagine um mundo onde todo o software tem que ser adquirido de um único fabricante. A julgar pela importância que os computadores possuem hoje em nossa sociedade, não é exagero traçar um paralelo com a situação de alguém vivendo na lua tendo que comprar o ar de um único vendedor. Sentiu um calafrio?

Pois então, você certamente já ouviu de várias pessoas que as melhores coisas da vida são gratuitas. O pôr do sol, uma noite de lua cheia, e porque não, software livre ;-)

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