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A castração é um assassinato em prestações

Por Cesar Brod

Data de Publicação: 13 de Janeiro de 2014

Sou daqueles avessos a mudanças. Até mudo de ideias, opiniões, mas tenho princípios essenciais aos quais me arraigo firmemente, a ponto de ser chato. Tenho um grande amigo, cujo nome não vou entregar (ele, se quiser, que se apresente!) que sabiamente contou-me que, no momento em que fez cinquenta anos, uma espécie de chave ligou em sua cabeça e ele passou a aceitar-se plenamente como era, com todas as suas virtudes e defeitos. Dessa forma, ele passou a aproveitar melhor o seu tempo com as pessoas que o amam pelo conjunto da obra e ligou o foda-se para aquelas que eram ótimas em classificar seus defeitos. Como resultado, ele ganhou muito mais tempo para estar com aqueles com quem realmente pode se divertir, aprender e seguir crescendo. Com o tempo - em certos casos, alguns anos - mesmo os enumeradores de defeitos entenderam que a companhia sábia, bem humorada e carinhosa do meu amigo tinham muito mais valor do que qualquer uma de suas falhas ou o conjunto de todas elas.

Também precisei fazer cinquenta anos para entender o que o meu amigo disse. A tal chave ligou em minha cabeça. O momento em que isso acontece poderia chamar-se o "momento Picard": I've become aware that there are fewer days ahead than there are behind. - disse o querido capitão no filme Star Trek Generations, se não me falha a memória (traduzindo: percebi que há menos dias à minha frente do que aqueles que ficaram para trás?). Isso não é algo triste, apenas a realidade.

Agora eu vejo as pessoas que já passaram pelo momento Picard de uma forma diferente e gostaria de pedir desculpa a todas elas por qualquer eventual tentativa que eu fiz de mudá-las, contra a sua vontade, quer eu tivesse consciência disso ou não. Em alguns casos, lembro nitidamente destas tentativas - longas discussões pesadas, tristes e infrutíferas que poderiam ter sido muito melhor aproveitadas com abraços, risadas e uma grande dose de perdão. O interessante é que, quando se chega na quina dos cinquenta, a gente nem se preocupa mais em ser perdoado. De uma hora para a outra o perdão que damos a nós mesmos é o suficiente. A gente não faz mesmo tudo certo. Cada um de nós é o conjunto de seus acertos, erros, alegrias e dores. Ninguém está em posição de julgar esse conjunto, em outras pessoas, tomando por base o seu próprio conjunto e nem mesmo um conjunto estabelecido como uma média considerada (por quem mesmo?) aceitável.

Querer que um ser humano mude, tornando-o aquilo que nós achamos que seria melhor, é castrá-lo aos poucos. A castração é um assassinato em prestações. Não falo, claro, da castração sexual e nem de mudanças aceitas em bons acordos pessoais ou sociais. Falo das mudanças que a gente até pode achar que, em algum momento, são benéficas e, por isso mesmo, são perigosas. Falo de castrar liberdades individuais. Castra-se um pouquinho aqui, outro ali, fundamentando-se em mil razões, tipicamente com a desculpa de agradar uns que outros ou a nós mesmos.

Em família, quando o amor entre os seus membros está acima de qualquer coisa, um acha que pode falar qualquer coisa para o outro e, acuado, alguém pode aceitar, externamente, mudar. A mudança exigida não se consolida - ninguém aceita ser castrado! - e certas discussões são recorrentes, tirando da vida preciosas horas que só aprendemos a valorizar quando passam a existir menos dias à frente... Mas acho que só é possível a real consciência desse desperdício de tempo ,mesmo, após a passagem pelo momento Picard.

Eu não sei se a leitura disso que escrevi pode servir para alguém. Os ensinamentos do meu amigo só serviram, para mim, depois que fiz cinquenta anos. Eu queria não ter perdido tanto tempo tentando, por exemplo, convencer meu avô a parar de fumar. Eu trocaria todo e qualquer minuto que, em vão, tentei mudá-lo, por outros em que eu pudesse ouvir mais de suas histórias ou, simplesmente, assistir Jornada nas Estrelas ou James West em sua companhia, deixando-o fumar, em paz, seu cigarrinho. Mas meu avô tinha mais de cinquenta anos e, hoje eu sei, ele ligava o foda-se, enquanto eu reclamava, e que soube perdoar-me por tudo o que eu, até então, ainda não sabia.

Sobre o autor

Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.

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