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Santíssima Trindade

Por Cesar Brod

Data de Publicação: 12 de Maio de 2008

Acho que foi um pouco antes ou depois da virada do ano 2000 quando o Franklin Carvalho ligou-me perguntando se eu escreveria um pequeno prefácio para uma nova edição de um livro sobre Shell Script, de autoria do Julio Neves. Claro que minha resposta foi sim! Além de já ser fã do Julio, escrever um prefácio para o seu livro seria uma grande desculpa para conhecer pessoalmente o "Papai do Shell". Eis o que escrevi:

Atrás das belas janelas de seu sistema operacional se encontra o caminho para o poder absoluto! O Shell! A famigerada "tela preta" que para os incautos pode parecer um "DOS". Mas o Shell é muito mais do que isto! É importante lembrar que enquanto outros sistemas operacionais optaram por esquecer que existem soluções simples para tudo, o GNU/Linux segue sendo utilizado nos mais recônditos ambientes, em valorosos 486. Além do mais, o Shell é muito divertido, e até sexy! Você já viu uma mulher com as unhas pintadas de vermelho escrevendo um programa em Shell?

Mais ou menos pela mesma época participei de um evento sobre Software Livre no Congresso Nacional. Posso estar enganado, mas creio que essa foi a primeira vez em que o Richard Stallman esteve no Brasil para falar sobre o GNU, a GPL e o software livre. Mas o fato mais marcante desse evento, para mim, foi conhecer pessoalmente o Rubens Queiroz!

Quis o destino que, inúmeras vezes, eu pudesse encontrar com o Franklin, o Julio e o Rubens, mas apenas uma vez pude encontrar com os três ao mesmo tempo, na choperia Giovanetti de Campinas. Local mais apropriado impossível! Depois de "um chopps e três pastel" eu estava certo de que encontrava-me diante da santíssima trindade da tecnologia livre e aberta do Brasil.

O Franklin, sócio com a sua esposa Regina da Pimenta Comunicação e um dos mentores intelectuais da extinta Revista do Linux, funciona como um catalizador da turma. É ele quem sabe sempre de todos, tem os telefones à mão e liga sempre que lhe convém -- não importa dia ou horário. Na época em que eu trabalhava como gestor do CPD da Univates, de tempos em tempos a Joice, e depois a Josi, recebiam uma ligação perguntando: "É muito ruim eu incomodar o velhinho? Ele não está dormindo? Já colocou o velhinho pra tomar sol hoje?". O velhinho, no caso, era eu!

Pro Franklin, todos estamos velhinhos. Quando nos falamos, ele costuma comentar: "Tens visto o Julio? Como ele está acabado, não?". Há alguns meses aproveitei uma série de reuniões que eu tinha entre São Paulo e Campinas para ficar um final de semana na casa do Franklin e da Regina, em Vinhedo. Fiz o tour etílico da cidade e até conheci o maestro da bandinha do coreto. Tenho a impressão que joguei bolão e porrinha, mas já não estou bem certo. Na segunda-feira, fomos visitar o Rubens Queiroz lá na Unicamp. O Franklin pediu ao recepcionista do Centro de Computação: "Pode chamar o Queiroz para nós?". O recepcionista chamou e, enquanto esperávamos, o Franklin continuou conversando com ele: "A gente tem que ter paciência, né? Ele já não anda mais tão bem... É sempre um esforço caminhar até aqui... Há quanto tempo você trabalha aqui? Hmm, nesse tempo o Queiroz piorou muito, né? Está velhinho..."

Com o Rubens acabo encontrando e conversando com mais freqüência, especialmente depois que ele teve essa idéia maluca de que eu deveria escrever uma coluna para o Dicas-L. Eu duvidava que conseguiria escrever semanalmente. Deu no que deu. Já na primeira vez em que nos encontramos, "clicou". Temos uma história de vida com várias intersecções -- tanto eu como ele demos aulas de inglês, gerenciamos equipes e temos o mesmo bom gosto para a leitura.

Quem ainda não assistiu a uma palestra do Rubens não sabe o que está perdendo. Os slides servem como uma referência para ele não perder o fio da meada, que perde mesmo, até dentro do mesmo slide. Cada palestra do Queiroz é uma surpresa! Não lembro mais em qual evento estávamos juntos, onde coube ao Rubens a principal palestra de abertura. Ele tem palestras flexíveis, consegue abordar o mesmo tema em 20, 30, 60, 120 minutos. É só falar para ele antes. Mas, nesse evento, o tempo da palestra era cerca de 90 minutos. Os discursos de abertura estenderam-se tanto que, no final, com o cronograma do evento todo atrasado, sobrou ao Rubens 15 minutos. Ele estava, mais ou menos, no terceiro ou quarto slide quando foi sinalizado que teria mais três minutos para concluir sua palestra. Sem pestanejar, ele colocou o último slide, com os links para sua apresentação e outras informações e parou de falar. A platéia, aplaudindo de pé, acabou vingando-se da organização do evento fazendo perguntas para o Rubens por mais uma meia-hora. Em outra ocasião, ele contou-me uma piada que relacionava a confissão de um judeu a um padre católico com a expansão do software livre. A piada era engraçadíssima e cabia muito bem na palestra que ele faria em São Leopoldo, em um de nossos Seminários de Desenvolvimento de Software Livre (hoje em estado criogênico, mas numa hora dessas a gente os ressuscita!). Na hora de contá-la, porém, ele adiantou o fim, misturou tudo, só eu, na platéia, e ele, no palco, rimos. O que não comprometeu, em nada, a qualidade da palestra.

Matei a saudade do Julio no FISL 9.0, ainda que, como é comum em eventos assim, a gente se encontre de pouquinho em pouquinho e vá batendo um papo recortado. Não cheguei a encontrá-lo para despedir-me. Eu e mais gente chamamos o Julio de "O Adorável Julio das Neves", ou o "Papai do Shell". O homem tem o maior repertório de piadas de gaúcho que conheço, e ele as conta de um jeito que não há gaúcho que se ofenda ou que deixe de rir. Por causa disso, pra me vingar, acabei aprendendo algumas piadas de carioca.

Em 2004 eu, o Queiroz e o Leonardo Lemes ajudamos a organizar o temário da Semana de Capacitação em Software Livre. O evento, uma iniciativa do Governo Federal, tinha a intenção inicial de atender a 500 pessoas. Poucos meses antes do mesmo, a expectativa já era de mil participantes. Foram 3.000 no final. Repetimos a ocorrência de mini-cursos, ampliamos a grade, buscamos dividir os participantes em ambientes diversos. Foi uma zona só! E seria um fracasso, não fôsse a boa vontade de todos os palestrantes, que se esforçaram em auxiliar-nos a fazer com que a coisa toda, estouradas quaisquer previsões possíveis, ainda servisse a seu propósito. Dentre os palestrantes, obviamente, estava o Julio, que ministrou um curso de Shell Script durante os cinco dias da semana. O material impresso, que deveria servir de apoio didático para o curso, nunca ficou pronto. A sala, para vinte pessoas, já tinha quase cinqüenta. Os alunos pegaram cadeiras dos corredores, improvisaram com bancos e dividiram-se, entre dois e três, entre os computadores. O Julio já havia começado a sua aula há pouco mais de meia-hora quando chega um retardatário, perguntando se poderia participar do curso. Com tanta gente lá dentro, certamente o mestre permitiu que mais um entrasse. Ao que o rapaz pergunta: "Onde posso sentar?". Sem nem piscar, Julio respondeu: "Tu é gaúcho, né? Escolhe um colo aí...". O rapaz saiu da sala, batendo os cascos. O Julio seguiu-o, rindo da cena e ao mesmo tempo desculpando-se pela brincadeira. O rapaz assistiu o curso até o final, e até o final foi zoado pelo Julio, mas aí já ria junto.

Este texto já ficou grande demais, apenas com uma historinha pequena (há tantas outras!) de cada um desses homens que eu amo, admiro, são meus mestres. Definitivamente, minha Santíssima Trindade! Abração para os três!

Sobre o autor

Cesar Brod usa Linux desde antes do kernel atingir a versão 1.0. Dissemina o uso (e usa) métodos ágeis antes deles ganharem esse nome. Ainda assim, não está extinto! Escritor, consultor, pai e avô, tem como seu princípio fundamental a liberdade ampla, total e irrestrita, em especial a do conhecimento.

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