Herrar é Umano

Por Rubens Queiroz de Almeida

Data de Publicação: 03 de Fevereiro de 2009

Recentemente eu tive a oportunidade de ouvir uma entrevista gravada com os fundadores da Conectiva e alguns de seus primeiros funcionários, entre os quais,o legendário Aurélio Marinho Jargas. A entrevista, interessantissima, aborda diversos aspectos interessantes da história da Conectiva, seu nascimento, seu crescimento e muitas outras coisas. O podcast na íntegra, em duas partes, está no site TickTack.

Durante a entrevista, o Aurélio contou um caso relacionado ao infame bug do comando "rm" do Unix. Eu vivenciei uma situação parecida quando comecei a trabalhar com o sistema SunOS, da Sun. No caso eu era um mero espectador. A tragédia sempre começava quando precisávamos limpar o diretório "/tmp". Neste diretório, além dos arquivos normais de trabalho gerados pelo sistema, haviam também arquivos escondidos. Arquivos escondidos são aqueles que se iniciam com ponto. Bom, neste dia fatídico, resolvemos limpar o "/tmp" e demos o comando:

# cd /tmp
# rm -rf .*

Note bem, os comandos são executados como o usuário root, o todo poderoso. Bom, demos o comando e esperamos. Passou um tempo mais longo do que o comum, começamos a nos inquietar. Cancelamos o comando. Demos o comando "ls" em seguida. Resultado: "command not found". E assim foi, para um monte de comandos. Tudo parou de funcionar. O ocorrido foi que o comando "rm" tinha um bug (ou feature). Quando eu emiti o comando "rm -rf .*" ele apagou tudo que havia no diretório "/tmp", os arquivos iniciados por ponto. O problema é que ".*" casa com "..", que é o diretório acima, o "/". Então, o comando "rm" apagou tudo do diretório "/tmp", apagou o ".." e continuou alegremente apagando tudo a partir do diretório raiz. Para piorar, não tínhamos backup. Restauramos o sistema, a partir das fitas de instalação e mandamos um email aos usuários comunicando uma falha de sistema, instruindo-os a restaurar seus arquivos a partir de seus backups. Até parece que alguém tinha backup ...

O caso relatado pelo Aurélio não teve um fim tão trágico, o comando foi abortado no começo e eles tinham backup, felizmente.

A questão é, os erros te deixam mais esperto. O valor pedagógico dos erros é inestimável. Eu nunca mais perdi um arquivo sequer em toda a minha vida profissional. Sempre tenho backups para tudo. Na dicas-l uma grande quantidade de dicas é exatamente sobre backups. Perdi a conta das vezes que passei madrugadas restaurando sistemas corrompidos na época em que sistemas Unix ainda não tinham mecanismos de recuperação para sistemas de arquivos (journalled filesystems) . Em época de chuva era fatal, caia o raio, faltava a energia, e as partições ficavam corrompidas. E lá vinha eu, de onde estivesse, para passar algumas horas agradáveis restaurando o sistema das fitas de rolo de backup, que possuiam a assustadora capacidade de 150 MB. Não só no trabalho, mas também nas palestras que ministrava, eu tomava o máximo cuidado. Uma vez, em Londrina, eu levei sete cópias de minha palestra, em sete disquetes. Seis deles estavam corrompidos. Sete é meu número de sorte.

Mas este não foi o único erro de minha vida. Houve vários. Mas nunca fui crucificado por isto. O Aurélio também não. E ele é hoje a personalidade que é, uma autoridade em um monte de coisas. Só erra quem faz. É muito conveniente ficar encostado num canto, vendo o mundo passar, nunca tomando a frente e deixando a vaca ir para o brejo. No artigo Chaos by Design, que aborda o estilo de gerenciamento no Google, é citado o caso de Sheryl Sandberg:

Pegue o caso de Sheryl Sandberg, uma vice-presidente de 37 anos de idade responsável pela sistema automatizado de propaganda. Recentemente ela cometeu um erro, que custou ao Google vários milhões de dólares. -- "Decisão ruim, nos movemos muito rapidamente, sem controles, desperdiçamos algum dinheiro," é tudo que ela comenta a respeito -- e quando ela compreendeu a magnitude de seu erro, ela atravessou a rua para comunicar a Larry Page, co-fundador do Google and líder de idéias não oficial. "Meu Deus, eu me sinto muito mal a respeito disto", ela disse a Page, que aceitou suas desculpas. Mas, ao se virar para sair, Page disse algo que a surpreendeu. "Estou muito contente que você tenha cometido este erro", ele disse. "Porque eu quero dirigir uma empresa em que nós nos movamos rapidamente e façamos muito, e não ser muito cuidadosos e fazer pouco. Se nós não cometermos erros como estes, nós não estamos assumindo riscos suficientes."

São dezenas e dezenas de casos como estes, mas apenas em empresas que fazem a diferença. Também fora do âmbito empresarial, encontramos diversos exemplos sobre a forma como erros são tratados. Em uma cidade do interior de Minas Gerais, o melhor cirurgião da cidade, já falecido, no início de sua carreira cometeu um erro primário ao realizar uma cirurgia. Devido a este erro, uma senhora, mãe de cinco filhos veio a falecer. O marido e pai das crianças, ficou grandemente abalado, mas perdoou o ocorrido. Este cirurgião, ao longo de sua vida, salvou centenas de pessoas, com sua habilidade e sua generosidade. Continuou sendo o médico da família vítima de seu erro. Sua carreira poderia ter se interrompido nos primeiros anos de sua vida profissional, não fosse a generosidade e visão de um pai.

Um outro exemplo vem do livro Comitê da Morte, de autoria de Noah Gordon. Este livro retrata o dia a dia de um hospital público. Neste hospital, mesmo com a supervisão de médicos experimentados, mortes ocorrem. O Comitê da Morte tem o papel de se reunir e decidir se a morte era evitável ou não. Se fosse evitável, quais lições se poderiam aprender com isto. Certamente muito poucos médicos restariam no mundo se fossem punidos exemplarmente ao primeiro erro.

A forma como uma empresa, ou um gerente, reage frente a erros, é um claro indicador do caminho profissional que se abre a sua frente. Empresas medíocres ou chefes medíocres, são intolerantes a erros. Não só isto, se sentem incomodados com a criatividade, com a centelha da inteligência que traz vida e dinamismo a uma empresa e à própria vida. Se sentem ameaçados por aqueles que inovam. Assim como os dinossauros, estão fadados a desaparecer sob a capa de sua mediocridade e de seu burocratismo irresponsável. Você não precisa ir junto.

Referências

  • Entrevista com pessoal da Conectiva, parte 1 e Entrevista com pessoal da Conectiva, parte 2 - Vale apena ouvir estas entrevistas, que contam muitas histórias interessantes sobre a Conectiva. Eu gostei muito da descrição do ambiente de trabalho da empresa, anárquico mas altamente produtivo. Quando eu conheci o Aurélio, em 1999, o cabelo dele era todo verde e ele usava uns anéis de borracha em volta do pescoço. Quem sabe é este o segredo dele? Alguém sabe onde se vende tinta verde para o cabelo? A Conectiva foi, em minha opinião, uma revolução no cenário empresarial nacional e no mundo do software livre. Fui usuário do Conectiva Linux por muitos anos e posso afirmar que eles foram extremamente inovadores em diversas frentes. Talvez eles estivessem muito a frente de seu tempo.
  • Artigo Chaos by design, da revista Fortune.
  • Livro Comitê da Morte, de Noah Gordon.
  • Estratégias de Aprendizado da Língua Inglesa - Nesta palestra eu enfatizo, como uma das principais estratégias de aprendizado de idiomas, o valor dos erros. Erros fazem parte do processo natural de aprendizado. Sem errar não aprendemos. A palestra pode ser baixada na íntegra por meio de clientes torrent.

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